Em 2000, aconteceu no Brasil uma das primeiras decisões favoráveis a quem defende a educação domiciliar, também conhecida pelo termo homeschooling, em inglês. A proposta indica que a família ou o tutor é responsável pela educação básica de crianças e jovens menores de 18 anos, no lugar da escola. Naquele ano, após aprovação da Câmara de Educação Básica (CEB), órgão do Conselho Nacional de Educação, sobre o Parecer 34/2000, o casal Márcia Marques de Oliveira e Carlos Alberto Coelho, que já adotava o homeschooling há dez anos, conseguiu que os filhos deixassem de frequentar a escola e passariam a ter aulas em casa, ministradas pelos próprios pais ou professores por eles contratados.
No ano seguinte, foi apresentado na Câmara dos Deputados o primeiro projeto de lei que visava à regulamentação do tema, mas não teve sequência. As tentativas se sucederam em mais três oportunidades (2002 e 2008), até que na quinta, em 2012, o deputado federal Lincoln Portela (PL-MG) conseguiu emplacar o Projeto de Lei 3.179, que prevê alterações tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) quanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/1996). Em 2018, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a proposta deixou de ser inconstitucional, e em 2019, foi regulamentada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Para se tornar lei e valer em todo o território, ainda precisa ser votada e aprovada no Congresso.
No caso do ECA, a mudança legislativa diz respeito sobretudo ao artigo 129, que implica o acompanhamento de frequência e rendimento escolares do estudante cuja família optou pela educação domiciliar (inciso V). Já a LDB, por exemplo no artigo 23, estipula que pais ou responsáveis legais deverão zelar pela “manutenção de registro periódico das atividades realizadas e envio de relatórios trimestrais” (VI), bem como a instituição ou rede de ensino onde o estudante estiver matriculado precisará se envolver na “promoção de encontros semestrais das famílias optantes, para intercâmbio e avaliação de experiências” (XIII).
A mais recente movimentação em torno do texto substitutivo ao PL de autoria de Portela, de autoria da relatora Luísa Canziani (PTB-PR), ocorreu na segunda-feira (8/11), com a apresentação do parecer no plenário da Câmara. Secretária-geral da Frente Parlamentar Mista da Educação, entidade criada em abril de 2019 que reúne 342 deputados federais e 42 senadores, Luísa é governista e resume como a lei seria aplicada. "As famílias vão ter que apresentar planos pedagógicos para a escola, que vai fazer monitoramento e validação das atividades que estão sendo desenvolvidas".
A rejeição ao projeto, porém, começa dentro da Frente Parlamentar, presidida pelo também deputado federal Israel Batista (PV-DF). "Nós temos 7.500 famílias que pleiteiam o homeschooling e 39 milhões de estudantes da escola pública, 18 milhões dos quais estão dentro do Cadastro Único de atendimento por programas sociais. Seis milhões não tiveram acesso às aulas durante a pandemia, 5,1 milhões de crianças estão fora da escola. Voltamos aos índices de 2001 em termos de evasão escolar", afirmou ele, em junho, durante entrevista à Rádio Câmara. "Não podemos permitir que pais mal-intencionados se aproveitem dessa legislação pra fazer o que tem acontecido nos Estados Unidos, onde um grande percentual das crianças abusadas vêm desse tipo de educação por conta do isolamento que elas sofrem. Nós temos que ter mecanismos de incentivo pra que os pais participem da vida escolar e mantenham seus filhos na escola".
Dias antes do que Batista dissera na rádio, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) aprovou o PL 3.262/2019, que tirou a educação domiciliar da categoria de abandono intelectual com a alteração no Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940). A infração prevê detenção de quinze dias a um mês ou multa, a partir daquele 10/6 não mais para quem optar pela educação básica para crianças e jovens fora do ambiente escolar. Ainda assim, Marcele Frossard, assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, quem nos encaminhou a decisão da CEB (clique aqui para ler), concorda com o deputado federal. Ela alega que a tentativa de evitar o convívio das crianças com diversidade de pensamento é "uma resposta superficial que não abarca a complexidade deste problema no país".
"Nossos principais argumentos estão na falta de proteção que este modelo implica para crianças e adolescentes, na abertura para a privatização da educação e de modelos educacionais que desprezam a ciência pedagógica desenvolvida no país, além do mau uso de recursos da educação pública para criar avaliações e monitoramento deste modelo educacional", elenca ela, que complementa. "Entendemos que a socialização é parte importante da formação de crianças e adolescentes e a escola é um dos principais espaços em que eles se desenvolvem e participam. Temos convencido a sociedade da importância disso através de nossos textos, documentos, lives e pronunciamentos públicos e materiais de maneira geral".
Pelo menos no âmbito das articulações institucionais, a Campanha tem sido bem-sucedida no objetivo de chamar a atenção para o tema. Em maio, 356 organizações e instituições subscreveram o "Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em Defesa do Investimento nas Escolas Públicas", que pode ser consultado aqui. Uma das argumentações presentes no documento é que o Parecer 34/2000 e decisões do STF “em julgamentos referentes a ações que tratam de leis inspiradas pelo movimento Escola sem Partido deixam evidente a importância da socialização de crianças e jovens na escola, oportunidade para viverem o diferente e o contraditório, aspectos fundamentais para o desenvolvimento".
Em seu primeiro mandato parlamentar, Luísa Canziani destaca que a busca pelo entendimento deve prevalecer nos três níveis de governo. "A gente tem que sempre respeitar a autonomia dos entes subnacionais [estados e municípios] e o que deve aparecer ou não em um projeto de lei e consequentemente uma lei. Quem vai trazer as diretrizes gerais será o Conselho Nacional de Educação".
Resta saber se o Congresso Nacional vai fazer igual ou diferente do Conselho Nacional de Educação, há 21 anos. Em que pese alguns conselheiros do CNE, na época, terem sugerido "tamanho estranhamento", aponta Marcele, quanto ao fato de ser injustificável "por que este tema entrou em pauta no Brasil". "Provavelmente tem uma influência da existência desse modelo de educação no exterior, por acirramento político e, portanto, para evitar que crianças de famílias com fortes crenças ideológicas convivam com diversidade de pensamento", sugere.
O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), recebeu o apoio de quatro deputados distritais para elaborar projeto de lei sobre a implantação do homeschooling na unidade federativa. Com a sanção, em dezembro de 2020, o DF se tornou a primeira dentre as 27 unidades da federação a adotar a educação domiciliar no Brasil.
A reportagem tentou contato com a presidenta da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Dorinha Seabra (DEM-TO), e o líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), mas não obteve retorno sobre o posicionamento de cada parlamentar a respeito do PL 3.179/2012. Inclusive, a deputada, conhecida também como Professora Dorinha, foi, entre 2014 e 2019, a relatora anterior a Luísa Canziani na redação do texto substitutivo desse Projeto de Lei. Caso nos respondam, esta matéria será atualizada.
Ouça, no podcast do Portal Eu, Rio!, as declarações dadas pelos deputados federais Luísa Canziani e Israel Batista, respectivamente secretária-geral e presidente da Frente Parlamentar Mista da Educação.
Fonte: Guilda dos Produtores de Conteúdo (GPC)