Há quase cinco meses, como noticiado pelo Portal Eu, Rio! na última sexta-feira (4), o centenário Museu Histórico Nacional, localizado na Praça XV, no Centro do Rio, não conta com uma diretora em definitivo. A historiadora Luciana Conrado Martins ficou em primeiro lugar no processo seletivo, cujo resultado foi divulgado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) em outubro de 2021, e teve o nome aprovado pelo presidente da autarquia federal.
Mesmo com a publicação no Diário Oficial da União, a Casa Civil do governo Bolsonaro ainda não ratificou o nome dela para dirigir a instituição fundada em 1922 e que neste ano comemora o centenário. Em entrevista exclusiva, o antropólogo José do Nascimento Júnior, doutor em Museologia e Patrimônio (Unirio) e presidente do Ibram de 2009 a 2013, opina que falta sensibilidade ao atual governo para entender o significado da política pública.
Autor do livro "De João a Luiz: 200 anos de Política Museal no Brasil" (Vermelho Marinho, 2021), fruto de sua tese de doutorado, Nascimento Júnior lamenta a ausência de perspectiva para o setor no atual cenário do país. "O não investimento em museus desqualifica as estruturas de gestão de cada instituição", destaca. Leia a seguir a entrevista na íntegra.
Nas suas palavras, segundo entrevista que você deu à deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) durante o governo Temer, o ex-presidente da República acabou com a política de museus, ao criar a Associação Brasileira de Museus (Abram) para privatizar esses espaços. Atualmente, a restituição do Ibram tem significado alguma alteração positiva na condução dessa política pública?
A existência do Ibram é importantíssima para a manutenção da política pública de museus, mesmo deficiente. Porque o Ibram, mesmo alguns setores não querendo, continua sendo uma referência de busca e política pública. O problema é que esse governo não entende a palavra política pública. Não tem essa sensibilidade. A política nacional de museus é fundamental e estruturante, referência inclusive do ponto de vista do Brasil no contexto internacional.
Tem processo semelhante ao do Museu Histórico Nacional acontecendo no Museu da Inconfidência (MG), de não ser conduzido ao cargo o candidato aprovado em primeiro lugar. É só o conteúdo ideológico que determina esse tipo de decisão por parte do governo federal?
Exatamente, nós criamos essa questão da seleção pública dos cargos de diretores de museus porque tínhamos claro do quão importante ser diretor de um museu nacional, do patrimônio que está sob a sua responsabilidade de gestão, e não devia ser indicado de um deputado, senador. Devia ser uma seleção técnica e pública. Eu acho inclusive que deveria passar os nomes pelas Comissões de Cultura do Senado e da Câmara para legitimar os nomes de diretores de museus.
O Estatuto de Museus é fundamental para que se mantenham fortes como instrumentos de cultura para a gestão pública.
Nesse caso, você diz que o Congresso atuaria para derrubar o veto do Executivo?
Exatamente. Nessa situação atual, as instituições - as associações de funcionários, os Conselhos Regional e Federal de Museologia - deveriam ir ao Ministério Público [Federal, MPF] e questionar esse tipo de veto a uma seleção pública legítima.
Isso tem previsão constitucional?
Qualquer indivíduo pode ir ao Ministério Público fazer um questionamento, não necessariamente precisa ser de uma instituição.
Mas do Ministério Público precisaria passar ao Congresso. Como é esse trâmite?
O Ministério Público faz um questionamento judicial e, nesse caso, ao Congresso, por que não está se cumprindo a lei, que diz que o diretor de Museu deve ser escolhido publicamente. É uma seleção de provas e títulos, de qualificação técnica. Não é qualificação política. Nós colocamos os museus nacionais da forma como devem ser valorizados, do ponto de vista da gestão. Não é o amiguinho do deputado.
O Ibram, criado em 2009, é responsável pela administração de 30 museus no país. O que determina a gestão do Ibram? Por que nem todos os museus nacionais estão debaixo desse guarda-chuva?
Porque na época de criação do Ibram, os museus do MEC não quiseram se juntar; quiseram continuar no âmbito das universidades. Seria muito bom para os museus universitários e os museus do Ibram que todos estivessem sob o mesmo teto de gestão. Isso fortaleceria mais ainda a gestão dos museus universitários.
Então, são só os museus universitários não estão abrangidos pela gestão do Ibram?
Os militares, também. Cada uma das Forças Armadas é responsável pela gestão do seu museu específico.
Na sua tese de doutorado, transformada em livro, você pesquisou os 200 anos da política museal no Brasil. Quais são os altos e baixos desse fomento?
Teve altos e baixos das políticas culturais na história do Brasil. Cada dirigente colocou a questão de museus em um patamar. Dom João VI e a família real, para colocar o Brasil no contexto dos países europeus, percebeu que ter coleções e museus importantes fazia o país estar no cenário internacional de forma diferenciada. Depois, Getúlio [Vargas] veio nessa linha, o Brasil em referência internacional para colocar como um país que dialogava culturalmente. Os museus sempre foram referências nos países de gestão cultural.
Mal comparando, a política museal na ditadura - referência positiva para o atual governo - também sofreu com essas questões de fundo ideológico?
Ideologia sempre tem na política, então não podemos ser ingênuos. A questão da disputa disso é outro patamar. A discussão de fundo: o que representa é o que significa a gestão cultural no país de hoje. O atual governo não tem a cultura e um projeto cultural que dê uma referência do Brasil nacionalmente e internacionalmente. Eles não sabem o que querem exatamente de uma política de museus, por isso não investem nas bases militares nem nas ações sociais dos museus.
Nós colocamos os museus nacionais da forma como devem ser valorizados, do ponto de vista da gestão.
Na sua opinião, tanto a criação da Abram quanto o Ibram ficar sob a gestão do Ministério do Turismo significam mais ou menos o mesmo?
A criação da Abram é a destruição de uma política pública, foi isso que se queria no governo Temer. E a manutenção e o fortalecimento do Ibram mostraria que este governo quer, de fato, ter uma política pública na área de museus; não é isso que está fazendo.
O que a sociedade civil pode fazer ou tem feito para contornar essa questão? Ou se trata de situação institucional, limitando a atuação à criação de Associações de Amigos para cada museu?
É um desejo da sociedade civil, em torno daquele museu. Aqueles que participam da vida dos museus podem se tornar Associações de Amigos, isto que é fundamental. A sociedade tem que ter claro que os museus são propriedades públicas da sua memória e da sua história. Não são propriedades de governos. No Brasil, nós não temos uma consciência do direito cultural como de todos, como à educação, saúde, a outras ações públicas. Essa consciência se faz desde a escola, o que é muito pouco trabalhado nesse sentido.
Mas além da criação de Associações, a sociedade civil poderia se organizar de alguma outra forma?
Como disse, fazendo movimentos em direção ao Ministério Público pedindo ações judiciais em defesa da cultura e dos museus. O descumprimento do Estatuto de Museus pelo Ibram está enfraquecendo a manutenção dos museus como instituições públicas. O Estatuto de Museus é fundamental para que se mantenham fortes como instrumentos de cultura para a gestão pública.
Por exemplo, a questão da internet. Pessoas que se organizem e lancem financiamento coletivo. Isso é permitido pela Constituição? Os recursos podem ser destinados a essas entidades públicas que são os museus?
Pode ser feito, desde que a sociedade tenha claro o que quer cada instituição. Para que eu vou juntar dinheiro para um museu, se ele não sabe qual é seu papel social?
Você acha que isso pode redundar em situações tão catastróficas quanto o incêndio do Museu Nacional, em 2018?
O não investimento em museus desqualifica as estruturas de gestão de cada instituição. Os técnicos estão se aposentando ou saindo, isso faz falta. O governo não contrata técnicos, isso é fundamental para manter os museus em funcionamento, abertos para receber a sociedade.