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"A Lei da SAF é facilitação maior para quem está comprando do que os clubes em si", diz jornalista que organizou coletânea sobre o tema

Cético sobre a empresarização do futebol, Irlan Simões buscou experiências diversas e até anteriores ao recente debate em curso no Brasil para traçar o panorama analítico presente em "Clube empresa"; obra investiga casos nacionais e aborda o impacto dessa mudança na forma como torcedores se reapropriaram de seus times do coração

Por Daniel Israel em 13/04/2022 às 04:02:36

"O fato de ser associação ainda pressupõe um espaço possível de transformação", destaca o jornalista e pesquisador da UERJ, Irlan Simões. Foto: Acervo pessoal

Imagina o caso de alguém que, além de ser apaixonado por futebol, é jornalista e participa de diversos podcasts sobre assuntos convergentes ao esporte mais popular do planeta. Até que depois de alguns anos em atividade na profissão, se torna acadêmico. Para quê? Pesquisar, condensar e abordar alguns dos temas menos comentados a respeito do futebol na imprensa esportiva brasileira. Prazer, Irlan Simões.

Doutorando na UERJ, onde também concluiu o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) e cuja dissertação foi publicada no livro "Clientes vs Rebeldes", Irlan tem se debruçado em discussões que vão da chamada arenização do estádios no Brasil ao, no momento, tema da futura tese. O mesmo que motivou o lançamento da coletânea de treze artigos, divididos em três partes, além de Apresentação e Introdução de autoria dele, reunidos em "Clube empresa: abordagens críticas globais à sociedade anônima no futebol" (Corner, 2020).

Em meio ao início do Campeonato Brasileiro de 2022, o primeiro desde a Lei Pelé (1998) em que está presente a proposta de transformar os clubes - atualmente, associações civis sem fins lucrativos - em empresas, Irlan conversou com o Portal Eu, Rio! sobre pontos de vista ignorados, por exemplo ao defender que o futebol não é lucrativo. "Os clubes de futebol cresceram em receita de uma forma inédita, essa lógica da aposta é o grande ponto fraco da economia política do futebol. É a única forma que o futebol dá dinheiro", garante ele. Leia a seguir a entrevista na íntegra.

Qual é a sua expectativa, em termos esportivos, para o Campeonato Brasileiro de 2022, no ano em que a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) começa a se consolidar?

Alguns clubes devem sair na frente por causa desse "desafogo" financeiro direto. Mas isso não tem muita duração. É o voo de galinha. Mas, de todo modo, vai gerar impacto, influenciar a opinião das pessoas sobre os benefícios das SAFs.

Nas primeiras partes do livro, em especial a introdutória ("Clube-empresa: histórico, impactos reais e abordagens alternativas"), assinada por você, a sugestão de que essas instituições vão melhorar com os passivos assumidos por um investidor e a transferência de pelo menos parte de seus ativos para essa figura é tratada como engodo, mentira. Pode detalhar por que o futebol não é ambiente propício para fazer negócio?

Eu acho que a própria história do futebol recente traz essa percepção. Desde os anos '80, os clubes foram convertidos em sociedades empresárias. Não conseguiram trazer esse resultado, sendo que no primeiro momento a ideia era que adotassem novas práticas de maior responsabilidade e controle, que se entendia que só empresas conseguiriam; associações civis seriam incapazes de fazer. Mas, de certa forma, existia um veto ou uma limitação à lógica do lucro. Tinha toda uma mentalidade à época, isso muito em virtude da social-democracia europeia, com a preservação da finalidade social do esporte e do futebol enquanto cultura.

Isso nos anos '90 vai ser transformado, junto com os meios de comunicação, do ponto de vista do marketing esportivo. Aí, se entendia que se uma vez não deu certo, nova etapa da empresarização vai ser liberar o clube aos lucros e que possa ser comprado por investidores estrangeiros. Boa parte desses investidores vieram, alguns conseguiram ter certa sustentabilidade financeira, mas os grandes vencedores, desde então, já eram aqueles grandes gastadores. Ou seja, a relação entre ganho esportivo e ganho financeiro já não estava muito clara.

E no sentido mais preocupante, as remunerações dos jogadores de futebol depois da Lei Bosman e de outras mudanças legais com relação ao contrato de jogador com o clube - direitos econômicos, direitos de arenas - vão provocar uma avalanche de inflação em efeito-cascata em todo o futebol, muito provocada também pela própria competitividade esportiva - clubes mais ricos pagam melhores salários para garantir os melhores jogadores. Os clubes que achavam que seriam sustentáveis, já não seriam pela natureza do futebol. Essa lógica de acreditar que é possível gerir um clube de futebol com equilíbrio financeiro e resultado esportivo, ao mesmo tempo, é muito relativa.

O que a gente tem visto é uma verdadeira falácia; estamos nos anos 2020 e vendo clubes que continuam quebrando, por mais que entrem novas mentalidades, novos tipos de investidores, novas formas de gerir clube de futebol. As receitas continuam a crescer de forma galopante, mas os salários também; isso é parte da lógica desregulamentada do futebol na Europa e América do Sul, principalmente, com esse sistema de ligas. Os clubes são rebaixados, sobem de divisão e aumentam muito seus custos, podem ou não ir para uma competição internacional e isso vai impactar como era o planejamento e que tipo de investimento foi feito para alcançar esse objetivo. Tudo isso explica por que o futebol é uma grande máquina de queimar dinheiro.

O que a gente sustenta é que o futebol é por natureza uma atividade deficitária, lógica de cassino, que exige predisposição à aposta, e seus custos são muito difíceis de conter. Porque as remunerações de jogadores são inflacionadas de ano em ano, porque é uma consequência desse sistema competitivo sem regulamentação.

Gostaria de entender melhor a sua conclusão a esse respeito, por exemplo quando afirma que "a economia política de um clube de futebol é de caráter altamente especulativo - e por isso instável". Mas se existem demanda, anunciantes, cotas televisivas para transmissão de campeonatos, todos em valores milionários, não seria uma tendência que o futebol gerasse dividendos diretos e indiretos como em qualquer atividade econômica lucrativa?

Os clubes de futebol cresceram em receita de uma forma inédita. A indústria do futebol europeu gerava menos receita do que qualquer outra norte-americana - beisebol, basquete, futebol americano etc. Trinta anos depois, o futebol europeu gera mais receita, sozinho, do que essas ligas combinadas. Há uma diferença brutal entre o esporte norte-americano e o europeu - que também é o sul-americano, a gente copiou e não mudou: a estabilidade, ter uma regulamentação tanto do ponto de vista financeiro como competitivo. Se os clubes que mais vencem são os que têm mais relevância social - mais torcida, mais público -, nos Estados Unidos tem o sistema que garante que todos os clubes tenham um mínimo de igualdade para disputar.

Para além disso, os times são franquias, submetidos a uma empresa maior que é a própria Liga. A Liga fecha o número de participantes e esse número não vai variar, a não ser que a Liga decida por isso. Não tem rebaixamento, acesso, segunda divisão. Essa estabilidade de competir ao longo de um ano e no seguinte a receita será idêntica, ou muito parecida, ou até maior, faz ter um planejamento mais estabelecido. Essa lógica da aposta é o grande ponto fraco da economia política do futebol. Para exemplificar, o futebol que mais dá dinheiro no mundo é o inglês. Na Inglaterra, os clubes estão quebrando por uma lógica muito simples: quando o clube está na Championship (segunda divisão) e quer alcançar a Premier League, gasta muito alto; a ordem da receita vai explodir.

Como os clubes ingleses são empresas (sociedades anônimas ou limitadas), quando algum sai da segunda divisão para a primeira divisão, isso quer dizer que valorizou muito. Então, esse tipo de risco é para valorizar essas ações e posteriormente negociar, porque é a única forma que o futebol dá dinheiro; é a venda de um clube, o chamado exit profit ("lucro de saída"). Uma lógica arriscada de gerenciamento de recursos que são finitos.

"O que acho mais interessante de perceber é que o torcedor nunca dá à pessoa que está à frente do clube o direito de se sentir dono."

Ao longo da Introdução, você também enumera que, atualmente, os investidores emergem a partir de quatro referências: geopolítica, eleitoral, mercado financeiro e os alheios. O que cada uma dessas pessoas e suas pretensões representam para o futebol, no Brasil e em todo o mundo?

Esse tipo de classificação foi para tentar elencar os possíveis atores políticos e econômicos do futebol, a partir dos seus objetivos e origens. Para exemplificar como existe uma tendência de uso do clube de futebol, tanto para fins políticos como financeiros. Porque já se compreende que clube de futebol não dá lucro. Pensar o clube como uma ferramenta fantástica de propaganda política, seja para um emirado, como é o caso do nível geopolítico (PSG, Manchester City); no segundo nível, finalidade eleitoral (Milan, Olympique de Marselha, Colo-Colo); no terceiro, falo do financeiro porque o clube serve como porta de entrada em mercados específicos e um facilitador de negociações (Aston Villa). Coloco os alheios na classificação mais ampla, de gente que tenta se envolver com o negócio do futebol e às vezes sequer tem o recurso para lidar com isso.

O clube pode ser estável e dar retorno financeiro, mas o que estou falando é que os clubes de grande porte, principalmente aqueles que são de elite e de massa, geralmente seguem essa lógica de exploração muito mais política do que financeira.

Centenas de botafoguenses torceram do lado de fora da sede social de General Severiano pela aprovação da venda de 90% dos ativos do futebol alvinegro para o empresário John Textor: investimentos milionários nos próximos dez anos, condicionados a resultados em campo. Foto: Vítor Silva/Botafogo

Em anos recentes, entre a realização de auditoria e a concretização da SAF do Botafogo, o primeiro clube do Brasil a seguir em atividade após a venda de seus ativos para um empresário estrangeiro, o ex-presidente alvinegro Carlos Eduardo Pereira (2015-2017) declarou se orgulhar de ser "amador". Esse tipo de afirmação não colocaria ainda mais água no moinho da empresarização do futebol?

É um sintoma de como esse debate associação-empresa aparenta. Acho que ninguém consegue defender esse modelo oligárquico, como são os clubes brasileiros - fechados em si, conservadores, encastelados. Clubes de futebol são, de certa forma, associações civis desde que nasceram, inclusive na Inglaterra, onde essa transformação é muito anterior por uma característica própria do direito inglês, não por uma vontade de transformar os clubes em empresa.

Você vai ver no mundo inteiro esse tipo de questão, clubes controlados pelas mesmas pessoas que se aproveitam como qualquer proprietário, com finalidades políticas. O clube como proteção com relação a seus inimigos, à Justiça, uma pessoa que basicamente se apropria. As associações podem ser transformadas, passando por cima, principalmente, desse tipo de mentalidade: dirigentes abnegados, amadores, pessoas que se dedicam a um clube de futebol por amor... Por amor, nada, óbvio que não é por amor; se dedicam porque existe uma finalidade política muito importante. É um espaço de articulação e socialização, de colher dividendos políticos. Existe a paixão de torcedor? Existe. Esses sujeitos também têm direito de ser apaixonados por um clube de futebol.

Mas a gente sabe que esse amadorismo esconde muitos interesses, então, por mais que ache que o clube deveria ser gerido como uma empresa, o torcedor comum pode conceber a associação para inclusive passar por cima dessa mentalidade. Faço parte de um grupo que defende isso. Se a gente pensar só a transformação em empresa, a gente está passando de uma possibilidade que é real e preserva o clube como uma propriedade de ninguém. Claro que é difícil falar sobre essas associações, como são no Brasil, mas as pessoas precisam entender que associação civil ainda é uma organização que não tem dono.

Na pior das hipóteses, será a reserva do que ainda há de comum - algo que é produzido pelas pessoas a todo instante e não pertence a ninguém - com relação àquele clube de futebol. Você pode criar esse mecanismo para a apropriação econômica desse clube do futebol - caso tanto das empresas como desses oligarcas que sempre usaram os clubes para essa finalidade. Não existem só dois lados nessa conversa, existem muitas variáveis, e principalmente a grande discussão é: como a gente poderia ter transformado as associações independente de virarem empresas?

Você cita o pioneirismo do futebol inglês, para além da invenção do esporte. Traz o histórico sobre o início associativo dos clubes, a criação de ligas, a remuneração dos atletas, a entrada em cena de industriais como proprietários das agremiações. E então, na década de 1990, o Campeonato Inglês passou por transformações na forma de consumir o futebol que estavam relacionadas ao receituário neoliberal. Você se opõe à SAF também porque existe o risco de um novo ciclo de elitização do futebol brasileiro?

O caso inglês é muito particular, tudo aconteceu antes e é uma questão própria do direito britânico. Sempre agradeço ao Luciano Mota por ter escrito o livro "O mito do clube-empresa", porque acho que já é uma referência histórica. Muito bem-escrito e bem-organizado para entender como se dão os processos de país a país. No caso inglês, é basicamente dizer que a associação civil, como nós conhecemos no direito germânico-latino definido por ele, não é uma pessoa jurídica unipessoal; no caso das associações daqui, sim.

A dívida da associação não é dos seus sócios, enquanto no direito anglo-saxão é de todos os seus sócios ao mesmo tempo. Isso já tornava as coisas muito arriscadas para quem se envolvia com o futebol na Inglaterra, por isso os clubes se converteram em sociedades limitadas para conter os riscos aos seus membros. Cada responsabilidade dentro de uma sociedade limitada corresponde à participação que esse acionista tem. O modelo jurídico foi lançado para preservar os envolvidos com os clubes, da mesma forma que as associações civis perduraram no futebol europeu e da América do Sul ao longo de quase todo o século 20.

Entrando no caso da transformação dos clubes em SAF, eu não sei se vai elitizar os estádios, porque as associações já fizeram isso bastante. Não só as associações, mas a própria mentalidade brasileira de como a violência do futebol deveria ser combatida. A gente tem a noção ideológica clara de que os estádios vão ficar mais seguros na medida em que tirar os pobres, o que é uma grande irresponsabilidade. O ingresso no Brasil, mesmo aqueles que são dos sócios-torcedores, está entre os mais caros do mundo, se considerar uma equação entre o preço e o poder aquisitivo.

A tentativa de elitizar os estádios brasileiros é muito clara, não consegue porque muitas vezes os clubes precisam que o público volte, são poucos os que fizeram políticas para garantir a presença desse torcedor comum. Não creio que as SAFs vão fazer isso, mas tem clube no mundo que prova que mesmo no formato empresarial o estádio é um lugar popular. Na Inglaterra, os preços dos ingressos foram contidos, fruto da organização dos torcedores. Infelizmente, as associações de torcedores no Brasil, além de terem pouco potencial de intervenção no debate público, ficam dependentes das torcidas organizadas - que poderiam cumprir esse papel, mas são grupos que já têm seus benefícios, reconhecidos dentro dos clubes, conseguem ingressos, têm os motivos de facilitação...

Outro motivo usado por você para concluir que o modelo corporativo não é benéfico ao futebol inclui a falta de ligação afetiva entre empresários e clubes. A certa altura, trazendo para o debate a noção de democracia mais ampla, você escreve que "ser fã de uma empresa produtora de espetáculo futebolístico é ter a 'liberdade' de manifestar sua posição por meio do consumo ou do não consumo, jamais do voto ou da voz". Mas, de maneira geral, os clubes no Brasil, como associações sem fins lucrativos, nunca foram abertos aos respectivos torcedores, seu principal patrimônio.

O fato de ser associação, queira ou não queira, ainda pressupõe um espaço possível de transformação. Isso quer dizer, um presidente malsucedido que não goza do prestígio junto aos torcedores e àqueles sócios está passível de perder a eleição e não mais ficar à frente do clube. Por pior que seja o modelo associativo, ainda está passível de transformação; o modelo de uma empresa, não. Você tem uma dinâmica que é bem distinta e muito mais rígida, a chance de alterar aquilo e dar um novo rumo só vai depender do novo proprietário. Quem decide é ele. Por mais que seja malsucedido, só sairá se quiser vender sua participação ou alguém estiver disponível para comprar. É essa a grande discussão de longo prazo que não estamos fazendo sobre a SAF, e ela vai existir.

Se o Ronaldo não for bem-sucedido no Cruzeiro nos três primeiros anos, a torcida vai cobrar e querer que ele faça aportes para torná-lo mais competitivo. Ele vai justificar que não dá porque está pagando as dívidas antigas do Cruzeiro e a torcida vai ter que entender que a nova realidade é assim; não vai gastar mais do que arrecada. O torcedor vai ficar chateado, mas o Ronaldo pode ficar 15, 20 anos e não vai poder alterar.

Quando Pelé foi ministro do Esporte, o governo federal aprovou a Lei 9.615/1998 - que leva o nome dele - buscando adotar um modelo à brasileira para o clube-empresa. Sobre a legislação, você comenta no livro que, caso obrigatória – como na Espanha – teria sido prejudicial aos clubes por conta do cenário econômico dos anos seguintes, dada a desvalorização cambial do real frente ao dólar. Apenas dois dos clubes de maior torcida – Bahia e Vitória – aderiram à proposta, porém saíram pouco tempo depois. Faz um resumo por que a Lei Pelé não emplacou? Existe alguma diferença daquela época para os dias atuais?

Existem muitas possibilidades de se entender o fracasso da Lei Pelé. Primeiro, buscou ser obrigatória. Os clubes não estavam dispostos a se transformar em empresa e caiu dois anos depois porque havia muita interferência dos clubes na área legislativa. Era um momento de crescente nas receitas do futebol, o Brasil tinha acabado de tornar sólida a questão da transmissão televisiva.

Imagina, a gente teve, em 1987, a Copa União - primeiro grande momento da comercialização dos direitos de transmissão do futebol - e dez anos depois vinha a Lei Pelé, aprovada em 1998 mas as discussões estavam desde 1993. As associações acreditavam que podiam continuar gerindo os clubes, não queriam passar isso para alguém.

A grande questão é que ali também existia um interesse próprio, desses dirigentes, e acho que a insensibilidade da Lei Pelé foi não entender que cada clube tem uma dinâmica, realidade própria. Não à toa, nesse momento de SAF, essas coisas estão aparecendo, resistência à transformação dos clubes em empresas. Porque é um espaço que pode ser explorado, existe um apego histórico-sentimental, muitas vezes esses conselheiros beneméritos se acham donos dos clubes, por mais que sejam associativos. Dá para entender fácil por que a Lei Pelé não vinga: os clubes não queriam virar empresa. Muitos não querem, ainda. Alguns só viraram porque estão afundados em dívidas e não tem jeito: vão ter que aceitar dinheiro novo, com um novo investidor ou proprietário. Literalmente, se vender.

A Lei Pelé não cria um modelo jurídico específico para clubes de futebol, que têm um artifício: futebol é negócio, uma atividade extremamente particular. Têm seu funcionamento muito próprio. Cada país, por exemplo Espanha, França, Portugal, Alemanha, Chile, criou um tipo jurídico novo, que é uma sociedade anônima, exclusiva e específica para a atividade do futebol. Entretanto, uma série de outros mecanismos vão facilitar esse processo, considerando que a atividade comercial do futebol é muito particular e precisa de alguns benefícios (tributários, transparência e controle, tentar redesenhar as dívidas dos clubes).

A Lei da SAF é uma facilitação maior para quem está comprando os clubes do que os clubes em si. Alguns clubes podem usufruir da SAF, independente da venda, por exemplo o Coritiba. Já vai criar sua SAF, está organizando suas dívidas como a lei sugere e ainda não está interessado em vender. Até então, a associação é dona da SAF. Tem esse fator preponderante também.

Antes do debate que levou à aprovação da SAF no Brasil, o governo apresentou aos clubes o Profut, um programa de refinanciamento de dívidas, a serem escalonados por 20 anos. Na sua opinião, é possível que as agremiações entendam que a adesão a esse modelo empresarial servirá para garantir que os débitos serão pagos?

Foram poucos os clubes que não seguiram o Profut, que são as dívidas tributárias, por não pagamento das parcelas: Cruzeiro, Santa Cruz. Já entra numa esfera de responsabilidade que é de outra ordem, não é comum às associações, que estão muito bem-organizadas ou com dívidas baixas que são totalmente controladas. Existem outros clubes que criaram o Acordo [ou Ato] Trabalhista, que é uma espécie de centralização de execução das dívidas trabalhistas e as cíveis sempre passaram com maior dificuldade. Não tem um mecanismo muito claro de como fazer isso, são as linhas de dívidas dos clubes.

A SAF vem com a promessa de que essas dívidas serão pagas, existe uma série de discussões sobre os buracos da lei. Instabilidades, insegurança jurídica, que eu tenho acompanhado, mas como não sou especialista em direito, não vou me dar ao direito de falar; mas sim, pelo que dá para entender, isso vai durar pelo menos quatro ou cinco anos de decisões judiciais que vão redesenhar a lei como estamos entendendo hoje. É muito difícil dizer o que será do RCE (Regime Centralizado de Execuções), dessa mamata tributária - como eu chamo - de vender jogador até o sexto ano sem tributar e isso não ser considerado como receita até ser utilizado para o pagamento de dívida. Não faz o menor sentido.

Em “A dança dos deuses”, o historiador Hilário Franco Júnior argumenta que o futebol reproduz o campo de batalha, por exemplo a disputa em zonas, a busca por um interesse comum aos dois adversários – a bola no gol do outro –, recursos de ataque e defesa para vencer a partida. Além disso, antes de se popularizar no Brasil, o esporte mais praticado no planeta era, pelo menos até a profissionalização (1936), quase reservado a homens brancos e ricos ou pertencentes às burguesias urbanas. Você avalia que a empresarização do futebol é defendida por essa relação histórica ou teria mais a ver, por exemplo, com as mudanças promovidas por João Havelange quando presidente da Fifa (1974-1998)?

A profissionalização não foi o que popularizou o jogador, que é popularizado desde os anos '10. Ele só não tinha a profissionalização de que o jogador poderia ser pago, mas já estavam sendo pagos desde então, é bom observar. Até as dissidências entre as Ligas se dão em virtude disso, clubes de origem aristocrática que começam a colocar em campo os empregados dos sócios mais importantes com uma remuneração.

A história do futebol é confusa nesse sentido, os clubes vão e vêm se não cumprirem determinadas tendências. Porque se entende que a transformação dos clubes em empresas é inevitável; o que eu defendo é que podem continuar funcionando como associações. Às vezes, criam uma empresa, mas quem controla são essas associações. O modelo de empresa é um meio para o clube de futebol, que vai muito além da própria associação; se torna uma instituição social de calibre difícil de mensurar, mobiliza milhões de pessoas. Nem empresa produtora de espetáculo, nem o equipamento do clube social. Aí, se acredita que vão acabar se não virarem empresa. Não é verdade, a gente tem exemplos muito claros. Clubes que continuam funcionando como associações, inclusive com maior estabilidade financeira, do que muitos que viraram empresas.

O Athletic Bilbao continua estável e é uma associação civil sem fins lucrativos, que faz eleições a cada três ou quatro anos, na ordem dos 15 mil a 20 mil votos. Cada país vai ter seu processo, mas existe uma finalidade político-ideológica que é a ascensão do pensamento neoliberal, sem dúvida.

Eu também considerava como marco histórico a eleição de João Havelange à Fifa, até o livro "Dança das cadeiras", de Luiz Guilherme Burlamaqui. Ele fala sobre o antecessor, Stanley Rous (1961-1974), inglês muito europeísta que odiaria ver um sul-americano entrando na Fifa, mas na verdade já era um grande impulsionador da comercialização do futebol. Esse discurso da defesa do amadorismo talvez servisse a Rous como plataforma política.

Produção acadêmica, literária, futebolística...: livro baseado em dissertação de mestrado enfocou na transformação do perfil do torcedor que frequenta estádios no Brasil e como parte deles tem lutado contra a imposição da arenização. Foto: Acervo pessoal

Houve no Brasil o caso extraordinário da 'Democracia Corintiana', que partiu do vestiário para reivindicar melhores condições aos atletas e abrir diálogo com a sociedade civil, durante os anos finais da ditadura (1964-1985). Ficou conhecida pelo lema "ganhar ou perder, mas sempre com democracia". Como convencer o torcedor em geral a participar do dia a dia de seu clube, já que a maioria das brasileiras e dos brasileiras está alijada da participação popular em organizações sociais, políticas e outras? Esse debate também está presente no "Clientes vs Rebeldes", livro de sua autoria?

Isso também é fruto da nossa tradição política, somos uma sociedade muito avessa à democracia. É um debate muito difícil, mas nunca é tarde para trazer a ideia de que os torcedores podem, sim, participar das discussões do seu clube de forma direta e indireta. Se a gente pensar do ponto de vista político, toda organização torcedora tem uma finalidade política: reforçar a representação, a identidade, de certa fortalecer protagonismo/visibilidade junto aos torcedores. É um modelo, ainda que primário, de participação política nos clubes. Torcedor acorda pensando no clube, discute os preços dos ingressos, contesta os programas de sócio-torcedor, isso é a nível global.

O que acho mais interessante de perceber nas culturas torcedoras é que contestam a propriedade dos clubes a todo instante, seja associação, seja empresa. O torcedor nunca dá à pessoa que está à frente do clube o direito de se sentir dono. Tenho me dedicado nos últimos anos a estudar esses movimentos de torcedores e o que consigo ver de comum na Itália, Espanha, França, no Brasil, na Argentina, no Chile, na Inglaterra é exatamente isso.

De outro lado, na vizinha Argentina, a torcida do Racing de Avellaneda se opôs à liquidação do clube. Sendo um dos artigos da coletânea que aborda aquele contexto, cabe recordar que a pressão dos racinguistas contribuiu para a Justiça do país voltar atrás e decretar a transformação do clube em empresa. Até que em 2009, a aprovação da Lei da Mídia, além de diminuir a propriedade cruzada dos grandes grupos midiáticos, estabeleceu o futebol como patrimônio do povo argentino. Na sua opinião, o que é determinante para essas diferenças de comportamento entre nações fronteiriças?

Tem outro ponto, a cultura política local que vai interferir, a própria cultura torcedora, qual é o nível de organização, interação. No caso dos clubes argentinos, a força é da localidade, têm muita raiz do bairro. São associações populares desde o início do funcionamento, dezenas de milhares de sócios, muitas vezes pessoas do próprio bairro, que usavam as instalações - prática cultural forte principalmente em Buenos Aires, porque o futebol levou muitos sócios para lá -, e os clubes cresceram muito em virtude dos sócios. Cada país vai ter sua história para contar. Mais recentemente, tive a compreensão de que os clubes espanhóis também eram massivos como os argentinos, mas seus processos eleitorais eram restritos.

Isso vinha muito por conta da ditadura de Francisco Franco (1939-1975) e no fim do regime, a monarquia começa a admitir a formação de uma democracia popular. Isso vai redundar que os clubes vão explorar ou exercitar essa democracia direta. O modelo de voto dos clubes espanhóis muda junto com o modelo político do país.

"A Lei Pelé não cria um modelo jurídico específico para clubes de futebol, que têm um artifício: futebol é uma atividade extremamente particular."

Qual é a sua opinião sobre a cobertura da imprensa a respeito da SAF no Brasil? Gostaria de destacar alguma produção que foca no tema? Pode ser jornalística, acadêmica ou outra.

A cobertura sobre a SAF começou péssima, muito senso comum, muita exaltação, pouco debate crítico. Deu uma melhorada considerável, com o passar do tempo. Hoje, a gente começa a ver os clubes acontecendo, existem alguns meios que conseguem fazer debate crítico, mas em geral continua muito ruim. Baseado em especulações, mais desejo do que compreensão da realidade. Por outro lado, na academia acho que se estabeleceu bem esse debate crítico. Vou destacar de novo o livro de Luciano Mota, lançado quase simultaneamente e com ideias muito iguais ao "Clube empresa". Acho que é a força da ciência.

Além de torcedor e sócio do Vitória, você já se articulou politicamente dentro do clube e foi conselheiro da instituição. O que tem a dizer para os torcedores que são contra e os que são a favor da adoção da SAF?

O que eu tenho dito sempre: não confunda a sua vontade de ser uma SAF com a vontade de ter um "sugar daddy" no seu clube. As pessoas acham que o clube vai virar empresa e imediatamente vai ganhar um grande mecenas, como é no Chelsea, City, PSG. Isso acontece em pouquíssimos clubes, então quem quiser SAF, vai ter que entender que também existem muitos riscos e principalmente uma relação controversa com esse novo proprietário. Pode ser muito pior do que com a antiga associação.

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