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Livro conta saga Guarani em busca da 'Terra Sem Mal', de alto a baixo do continente

Brasil reúne a maioria dos sobreviventes destes indígenas, parte fugidos de guerras e conflitos fundiários

Por Portal Eu, Rio! em 22/08/2022 às 07:29:08

Rafael Mendes Júnior pôs em livro pesquisa etnográfica que viveu com os Guarani, em áreas como a Terra Indígena Nova Jacundá, em Rondon do Pará. Foto: Acervo Pessoal

O Mapa Guarani Continental indica que a maior destes indígenas se encontra no Brasil, com mais de 85 mil pessoas. Em seguida, estão a Bolívia, com 83 mil, o Paraguai, com 61 mil, e a Argentina, com 54 mil, todos unidos pela cultura e língua indígena que é a mais falada na América do Sul.

No início deste mês, em 3/8, a Editora UFRJ lançou A Terra sem Mal: Uma Saga Guarani, livro escrito pelo antropólogo Rafael Mendes Júnior como resultado da pesquisa realizada durante dois anos em aldeias localizadas no sul fluminense e no norte do país. O estudo relata o cotidiano vivido pelo povo e traz uma descrição inédita da saga de um grupo guarani que, na década de 1930, migrou da fronteira do Paraguai com o Brasil em busca da “terra sem mal”, onde se pudesse viver plenamente, e se fixou no Pará e no Tocantins entre as décadas de 1980 e 1990.

Outras questões etnológicas, como as relações com espíritos, deuses, o tema da morte e seus rituais fúnebres, migrações guiadas por xamãs, nominação, casamentos interétnicos e a conversão de uma parcela do grupo ao cristianismo evangélico pentecostal, também são desenvolvidas ao longo dos quatro capítulos da obra.

O livro do antropólogo Rafael MendesJúnior contando a saga de grupos Guaranis foi lançado no início do mês pela Editora UFRJ | Foto divulgação


O Conexão UFRJ conversou com Rafael Mendes Júnior, pesquisador do Laboratório de Inovações Ameríndias (Lina), do Museu Nacional (MN). Confira a entrevista completa a seguir:

Conexão UFRJ: Qual foi a provocação que você teve para escrever o livro?

Rafael Mendes Júnior: Bem, o livro é resultado de minha tese de doutorado, defendida em 2016, no Museu Nacional. Para eu escrever a tese, trabalhei em quatro terras indígenas: duas no estado do Rio de Janeiro, que eu chamei de “Meridionais”, e duas nos estados do Pará e Tocantins, que chamei de “Setentrionais”. Eu sabia que estava escrevendo, pelo menos no que toca os Setentrionais, sobre um grupo do qual havia apenas um trabalho de antropologia. Sabia também da singularidade de seu contexto etnográfico: era o único grupo que seguiu por uma rota insólita em direção ao Norte.

Eu havia decidido ir ao Pará para estudar as concepções guaranis sobre caça. Havia acabado de defender uma dissertação de mestrado em antropologia sobre caça, entre os Meridionais, num contexto em que a caça era exígua e o seu simbolismo extremamente rico. Pensei que poderia aprofundar muito mais se eu fosse para uma região onde houvesse caça mais abundante. O curioso é que, embora os Setentrionais caçassem, não queriam falar muito sobre esse tema, por mais que eu os incitasse. Porém, queriam falar de sua viagem desde a fronteira paraguaio-brasileira até as regiões onde se encontram atualmente.

As pessoas queriam falar de suas memórias, do que passaram durante esse trajeto, dos motivos que as impeliram da fronteira e dos propósitos que buscavam. Emergiu um tema caro à etnologia guarani, que era a busca de uma terra áurea (yvy ju) ou terra sem mal (yvy marã e?).

A questão era: como falar sobre esse tema de uma forma original? Afinal, muito já foi escrito sobre ele. E acho que consegui, pois não falei somente da terra sem mal, mas como a demanda da terra sem mal permitiu que um grupo migrante experimentasse diferentes tipos de transformações em quase 80 anos.

A defesa da tese foi muito auspiciosa, com a orientação cuidadosa de Aparecida Vilaça e as críticas dos membros da banca, que me estimularam a investir na publicação do trabalho. Fiz modificações em relação à tese e, agora, com a parceria da Editora da UFRJ, o livro veio à luz no fim de 2021.

Conexão UFRJ: Você fez uma pesquisa de campo, etnográfica, vivendo com os Guarani. Como foi a sua preparação para viver uma realidade tão diferente da sua?

Rafael Mendes Júnior: A minha relação com os Guarani tem muito a ver com a minha formação como antropólogo. Ainda quando aluno do curso de Ciências Sociais, na UFF, fui instigado pela minha orientadora – Tânia Stolze Lima – a realizar uma pesquisa de campo com um povo indígena. A ideia original era que eu fosse para o Xingu, para desenvolver um trabalho com os Yudjá com os quais ela trabalhava. Entretanto, alguns contratempos me impediram, mas persisti na ideia de trabalhar com um povo indígena.

Em Parati, conheci os Guarani em 2003, e me chamava a atenção o fato de ver as mulheres vendendo artesanato na cidade, comunicando-se entre si somente em guarani. Chocou-me, positivamente, o fato de ver um grupo tão perto da cidade e que ao mesmo tempo estava tão distante. Tentava me comunicar com elas, e o seu desprezo pelos transeuntes era total. Voltei de Parati decidido que trabalharia com os Guarani, que faria uma pesquisa de campo para escrever a minha monografia, ainda que não fosse essa uma exigência para a graduação.

Tânia me apresentou os primeiros trabalhos etnográficos sobre os Guarani: As Lendas da Criação e da Destruição do Mundo entre os Apapocuva Guarani, de Nimuendaju; e A Terra sem Mal, de Hélène Clastres, ainda que esse último não seja bem um trabalho etnográfico.

No início de 2004, fui à aldeia de Parati-Mirim, onde viviam muitas das mulheres que vendiam artesanato em Parati. Era incrível como eu via na minha frente algumas das descrições de Nimuendaju e Clastres: a opy, casa cerimonial, construída no sentido leste-oeste; os instrumentos rituais em seu interior; a geografia das casas conectadas, muitas das vezes por caminhos estreitos; e, sobretudo, o uso corrente do idioma guarani.

Em 2005, iniciei o primeiro trabalho de campo, quando fiquei dois meses em Parati-Mirim. Como contrapartida, me dispus a dirigir uma Kombi que eles tinham, sempre que precisassem, já que não havia pessoas habilitadas na aldeia. Posso dizer que o maior investimento se deu nesse período, que foi romper o desprezo que eles tinham pelos estranhos. Não foi o fato de fazer um trabalho acadêmico que despertou nos Guarani o desejo de me abrigar entre eles, mas o fato de dirigir uma Kombi. Com isso, investi no aprendizado da língua e na ampliação do escopo teórico.

A partir de então, comecei a construir uma trajetória com os Guarani, uma história mesmo. Voltar se tornou cada vez mais fácil. Quando decidi ir ao Pará, levei comigo a filha e a neta do então cacique de uma das aldeias paraenses. A filha vivia no Sudeste desde meados da década de 1980; conto parte de sua história no livro. Foi o suficiente para que me aceitassem em um novo contexto, totalmente estranho, e dali fui levado pelos moradores ao Tocantins.

Conexão UFRJ: A sua pesquisa foi realizada em realidades distintas. Com os Guarani, no sul fluminense e no norte do país. Existem diferenças e peculiaridades em relação a essas realidades? Quais você consegue destacar?

Rafael Mendes Júnior: Há, sim, muitas diferenças e similitudes. Comecemos pelas diferenças: no Sudeste e no Sul do país há um complexo xamânico que envolve rituais de cura, proteção e nominação. Um xamã, detentor de certos conhecimentos, é responsável pelo tratamento dos enfermos e pela revelação dos nomes das crianças quando completam o primeiro ano de vida.

Menos comum é a mudança de nomes de pessoas adultas. O xamã, durante o nhemongarai (ritual de nominação), é capaz de conversar com o espírito de uma criança e fazer com que ele revele o seu nome, que será contado aos seus pais. A revelação dos nomes demonstra o desejo de construção de redes de parentesco entre humanos. Há aqui uma concepção sobre humanidade que é resistente à compreensão ocidental e que exploro no primeiro e no segundo capítulos do livro. A humanidade não é dada aprioristicamente.

Entre os Setentrionais, o falecimento de seu último xamã, na década de 1960, e o não surgimento de outro fizeram com que o conhecimento sobre a revelação dos nomes se perdesse. É notório que as pessoas nascidas antes de 1965, no Norte, tenham nomes Guarani e que aquelas que nasceram posteriormente a esse ano tenham apenas nomes brasileiros. Recentemente, desde os últimos 25 anos, os Setentrionais têm adotado nomes guarani aleatoriamente para as suas crianças. Entretanto, dizem que fazem para não se esquecerem do seu repertório onomástico, e que este não é o nome verdadeiro da pessoa, pois o verdadeiro nome é aquele que o espírito conta ao xamã.

Quanto às semelhanças, podemos destacar a terminologia de parentesco e a classificação de primos como irmãos; também as concepções sobre uma noção de humanidade que pode incluir diferentes espécies de seres que se concebem como gente. Explico-me: sonhar com um parente falecido e compartilhar comida com ele é algo que pode ser perigoso para o sonhador.

Os Guarani, assim como muitos outros povos ameríndios, sustentam uma descontinuidade entre vivos e mortos. Do mesmo modo que uma pessoa é gente para outra, um morto é gente para outro morto, e se um vivo toma o segundo como gente é sinal de que algo não está normal. Esse fato se dá com várias outras categorias de seres, como os animais, os donos e até mesmo os brancos (não indígenas).

Sobre os donos, cabe um rápido esboço. É uma concepção de que tudo que existe é domínio de outro ser. Sua expressão em guarani é –ja. Assim ka’aguyja é o dono da mata, alguém que pode ter o domínio sobre certas regiões da floresta. Se as pessoas conseguem caçar, se elas obtêm animais, é porque os donos (-ja) lhes permitem. Isso vale também para os rios com os seus donos, que exercem domínio sobre os peixes; para os caminhos etc.

Conexão UFRJ: Você encontrou dificuldades ao longo da pesquisa? Se sim, quais?

Rafael Mendes Júnior: A primeira dificuldade foi a aceitação pelo grupo quando comecei a pesquisá-lo. Os Guarani são conhecidos na literatura por serem arredios e avessos a relações com não indígenas, principalmente aceitá-los em suas casas, falarem de suas vidas.

Outra dificuldade inicial era o registro das entrevistas, das narrativas, dos rituais. Poucas pessoas permitiam que eu escrevesse a entrevista. Gravar, menos ainda. Por fim, muitos já me perguntavam: não vai gravar? Os registros imagéticos que tenho feito, ao longo de todo esse período, hoje são, muitas vezes, demandados pelas pessoas quando desejam uma foto de um filho/a em sua primeira infância.

No Pará encontrei outro tipo de dificuldade relacionada a grileiros e falsos pastores religiosos. As tentativas de invasão de terras indígenas e ameaças de violência física representaram um momento de tensão durante a minha primeira estadia lá, em 2012.

Conexão UFRJ: Você acredita que ainda seja possível buscar uma terra sem mal, como fizeram os guaranis na década de 1930, migrando da fronteira paraguaio-brasileira?

Rafael Mendes Júnior: Não estou certo de que uma resposta a essa pergunta oscila entre acreditar ou não numa busca como essa. O antropólogo não é alguém que crê, mas alguém que se interessa pelo que os outros creem. Essa crença pode ser desde o que se passa em um terreiro de candomblé, numa aldeia indígena ou num laboratório de ciência. Ótimas etnografias foram produzidas em todos esses contextos sem que os antropólogos se tornassem filhos de santo, indígenas ou cientistas.

Se o antropólogo se interessa pelo que os outros creem, a questão passa a ser: “Que mundo é esse que emerge a partir da crença alheia? Quais as relações possíveis? Por meio de quais categorias esses outros apreendem o mundo à sua volta?” Há diferentes leituras da realidade social, o que nos leva a compreender que há tantas realidades quanto leituras.

Os Guarani buscaram, num certo momento, uma terra onde não mais se morria. E do que eles fugiam? Da guerra do Chaco, ocorrida entre o Paraguai e a Bolívia, entre 1932 e 1935, e que consumia um grande contingente indígena que era compulsado pelos exércitos dos dois países. Diversas vezes ouvi pessoas dizerem que os seus pais haviam morrido na “guerra do Paraguai”. A uma delas eu retruquei: “Mas com quem o Paraguai guerreava?” Ao que ouvi: “Com a Bolívia”. No Pará, uma senhora me contou várias vezes que o seu pai, há muito falecido, carregava água nas trincheiras para os soldados paraguaios.

O tema da busca da terra sem mal enfrentou na etnologia guarani certa ambiguidade. Uma parte dos pesquisadores defendia que, ao buscá-la, as pessoas tentavam escapar da destruição, ingressando em uma terra de imortalidade. Outra parte apostou numa concepção mais ecológica do termo, em que “terra sem mal” remete, antes, a uma terra boa para se viver.

Os processos de demarcação de terras indígenas, conforme modelo que respeitasse o que se prevê no artigo 231 da Constituição, caminhariam, de certo modo, pari passu com os anseios não somente dos Guarani, mas de cerca dos 230 povos indígenas.

Rafael Mendes Júnior é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com mestrado em Antropologia pela mesma Universidade e doutorado em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (MN) da UFRJ. É pesquisador de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UFF e membro do Laboratório de Inovações Ameríndias (Lina) do MN.

Saiba mais sobre o livro A Terra sem Mal: Uma Saga Guarani no site da Editora UFRJ.

Este texto é resultado das atividades do projeto de extensão “Laboratório Conexão UFRJ: Jornalismo, Ciências e Cidadania” e teve a supervisão da jornalista Vanessa Silva.

Fonte: UFRJ

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