Após o resultado das urnas do primeiro turno pleito eleitoral no país, muitos brasileiros viram, espantados, a eleição de políticos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e ligados à ala considerada mais radical, como a ex-ministra da Mulher, Damares Alves (eleita senadora pelo Distrito Federal) e o ex-ministro da Saúde general Ernesto Pazzuelo (deputado federal mais votado no Rio de Janeiro), ambos pelo PL. As pesquisadoras Liliane Abreu e Natália Sayuriquando lançaram o livro “Complexo de Cassandra - o adoecimento do saber diante de uma sociedade alienada e negacionista”.
O livro relaciona a situação sociopolítica do país com a saúde mental dos brasileiros, que - para as pesquisadoras -, estariam ligados. “Por que e como estamos adoecendo diante da ignorância e do negacionismo?” Essa foi a pergunta norteadora feita por Liliane e Natalia. Decidiram, em princípio, escrever um artigo científico que relacionasse a situação sociopolítica do país com a saúde mental dos brasileiros.
Em julho de 2021, o Brasil contabilizava 550 mil vidas perdidas pela Covid-19 e uma CPI levantava provas de genocídio, corrupção e fake news. Profissionais de saúde estavam exaustos física, emocional e mentalmente, cientistas e especialistas antiBolsonaro de diversas áreas tentavam mostrar à população a deturpação de informações. “Parecia que nada adiantava. Então, o que mais fazer?”, questionavam as pesquisadoras.
À série de artigos somaram-se entrevistas com dois grupos de pessoas. Um formado por professores, historiadores, médicos, enfermeiros, cientistas e políticos e o outro grupo, por ex-bolsonaristas, bolsonaristas convictos, terraplanistas e antivacinas. “Queríamos entender como pensavam cada grupo”, explica Liliane. Ao todo, foram oito meses de entrevistas e pesquisas. “Nós já tínhamos uma coleta de dados feita há dois anos e que usamos no livro”, acrescenta a pesquisadora.
O livro é baseado em três fortes suportes. O primeiro é a Psicologia, com construções de comportamentos, estruturas de personalidades e adoecimentos. As autoras abordam a histeria, a perversidade, psicoses, angústia, ansiedade, medo, burnout e Síndrome do Impostor.
“Envolve questões culturais, educacionais, sociais e mentais das pessoas. Esses eleitores têm seus preconceitos e olham as coisas de forma distorcida. Isso pode estar associado à saúde mental ou não. Para a pessoa alienada, o universo dela é apenas aquele e não enxerga mais além. Acaba se tornando submissa a cidadãos mal intencionados e fazendo o que eles sugerem. No negacionismo, a pessoa tem consciência de que algo está errado, mas nega a ciência e as vacinas, por exemplo. Distorce tudo. Em geral, ganham por isso, seja em dinheiro, status e poder. Além disso, espalham fake news. As pessoas manipuladas e as manipuladoras se relacionam e se realimentam”, observa Liliane.
“Tivemos acesso a um livro baseado em um historiador conhecido que teve sua obra deturpada pelo escritor, que fez um revisionismo. Quando fomos ver a obra original, da qual o livro se baseou, dizia o oposto do que o autor do livro falava. Mas, as pessoas vão acabar lendo o livro com as informações deturpadas”, conta Liliane.
Qual alternativa para isso? “A saída está na educação, com ampliação de políticas sociais e de inclusão. Mas, o atual governo está querendo destruir tudo isso, com políticas como a do homeschooling (educação em casa), por exemplo”, explica a pesquisadora.
O segundo suporte é o conteúdo das entrevistas em cruzamento com pesquisas feitas com instituições e órgãos públicos da União e estaduais, além dos grupos de intelectuais e profissionais de várias áreas, e o de bolsonaristas e negacionistas. O terceiro e último suporte da obra é o embasamento teórico sobre a construção do patriarcado, a Inquisição e o nazismo. “Sem a pequena revisão dessas três formulações históricas, não seria possível entender como elas se entremeiam e influenciam diretamente o que vivenciamos hoje”, afirmam Liliane e Natália, na introdução.
O nome do livro surgiu em 2021 por conta de um artigo e de um vídeo da bióloga e cientista brasileira Natália Pasternak, que em 2020 tornou-se a primeira pessoa brasileira a integrar o Comitê para Investigação Cética (CSI, na sigla em inglês), instituição criada nos Estados Unidos, em 1976, para investigar, apurar e esclarecer alegações que negam ou desafiam a ciência. No vídeo, Pasternak lançava mão do mito de Cassandra, da Grécia Antiga, para ilustrar o momento do país.
Cassandra foi cortejada pelo deus Apolo, que possuía o poder da premonição. Ele deu a ela seu poderoso dom da predição, mas arrependeu-se logo depois de ser rejeitado. Como não podia mais tirar essa dádiva da moça, colocou-lhe uma maldição: ninguém acreditaria em suas palavras. Assim, Cassandra previu toda a condução e desfecho que mataria seus pais, irmãos, população e destruiria toda a cidade de Troia, mas ninguém lhe deu ouvidos. Ela implorou, repetiu incansavelmente e, de novo desacreditada, foi isolada como louca numa torre pelo seu pai, Príamo, rei de Troia.
Esse mito foi transportado à psicologia para definir o Complexo de Cassandra que, por sua vez, ilustra com exatidão o Brasil de hoje, “em que profissionais de diversas áreas, ativistas, cientistas e estudiosos em geral alertam a população por todos os meios possíveis e são desacreditados, assistindo à toda uma destruição que poderia ser evitada”.
As autoras
Liliane tem 53 anos e é bacharelanda em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP-SP), com formação final em dezembro de 2022. É arteterapeuta (AATESP), professora especialista em Neurociência Pedagógica (AVM/UCAM), pesquisadora especialista em comportamento e consumo, ativista em Direitos Humanos e voluntária em projetos sociais.
Natalia tem 27 anos e é bacharelanda em Psicologia pela UNIP-SP, com formação final em dezembro de 2022. Bacharela em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero/SP, também atua como analista de treinamento e desenvolvimento corporativos.