A Lei 14.338/22, sancionada em 11 de maio do ano passado, originou-se do Projeto de Lei 3846/21, do deputado federal André Fufuca (PP-MA), que institui a bula digital de medicamentos, disponível por meio da tecnologia de QR Code. A votação, em regime de urgência, sem o devido debate com a sociedade, terminou na aprovação, com ressalvas, e ocorreu na Câmara dos Deputados e, depois, no Senado. Na sequência, a PL foi sancionado pelo presidente da República, torna-se lei. A ressalva diz respeito à continuidade da obrigação do acompanhamento da bula impressa, exceto em casos a serem definidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.
Segundo levantamento realizado pela Associação Brasileira da Indústria Gráfica (Abigraf), a despeito da importância de se modernizar processos continuamente, nenhum país do mundo, incluindo os desenvolvidos, aboliram a modalidade impressa.
“Trata-se de algo imprescindível, diria até vital, já que boa parte da população mundial não tem acesso completo à internet, seja pela qualidade dos aparelhos, das redes ou dificuldade no manuseio”, afirma o advogado Alexandre Rohlf Morais, especializado em defesa do consumidor. Segundo ele, abolir a bula impressa pode colocar em risco a saúde e a vida de milhões de pessoas no Brasil. “Inclusive, pela extrema importância do tema, causa-me estranheza a urgência da tramitação do projeto de lei e sua aprovação sem amplo debate com a sociedade, maior impactada pela medida, sobretudo os mais necessitados economicamente e alheios a meios digitais para obrigatória consulta a bula de medicamentos."
Estudo do PwC Brasil, em parceria com o Instituto Locomotiva, mostra os gargalos e dificuldades de acesso à internet no Brasil. Citamos trecho das conclusões: “O estudo que conduzimos traçou um retrato preocupante da prontidão do país para um futuro que poderia ser promissor. Teremos grandes dificuldades de avançar no processo de digitalização enquanto o acesso à internet permanecer amplamente desigual, os equipamentos disponíveis não forem adequados para a formação digital e o sistema de educação básica continuar a formar um grande contingente de brasileiros incapazes de interpretar textos, sem conhecimentos suficientes de matemática e do idioma inglês.”
“Frente a esse preocupante panorama, onde quase metade da população brasileira tem algum tipo ou grau de dificuldade de acesso, como podemos abolir a modalidade de bula impressa? Impossível e perigoso. Veja, não estou dizendo para não se ter a bula digital. Ambas podem conviver harmonicamente. Contudo, não podemos nos esquecer da parcela da população – bastante considerável – que, ao não ter acesso à descrição contida na bula pode colocar sua saúde – e de seu familiar – em risco”, alerta Morais. De acordo com o advogado, alguém pode tomar uma quantidade muito superior de medicamentos e entrar em coma ou vir a óbito. “É algo muito sério! Estamos lidando com a vida de pessoas”, adverte.
Um ponto levantado pelo diretor executivo do Procon-SP, o advogado e mestre em Direito Filipe Ferreira, é o direito que as pessoas têm à informação de acordo com o Código de Defesa do Consumidor - CDC. “O CDC estabelece, em seu artigo 4º, que os consumidores devem ter as necessidades atendidas com respeito à sua dignidade, saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos, melhoria da sua qualidade de vida, transparência e harmonia das relações de consumo. Já no artigo 6º, o CDC prevê como direito básico do consumidor a obtenção de informação adequada sobre diferentes produtos e serviços, como a especificação correta de quantidade, as características, a composição, a qualidade, os tributos incidentes e o preço, incluindo os eventuais riscos que tais produtos ou serviços possam causar”, elenca. De acordo com ele, isso ratifica a necessidade de se manter a bula impressa de medicamentos. “É um total direito do consumidor cuja prerrogativa não lhe pode ser retirada de forma abrupta, repentina e extremamente perigosa. E, justamente por tais características, esse direito é de natureza constitucional, é cláusula pétrea que não pode ser abolida nem pelo legislador ordinário nem por qualquer resolução de agência reguladora", enfatiza Ferreira. “Os sites dos Procons estaduais têm informações sobre as formas de reclamação. É muito importante o cidadão avisar quando vir ou presenciar algo errado praticando sua plena cidadania e exercendo seu total direito”, finaliza.