Jesus, um bombeiro que traz sobre seu capacete uma coroa de espinhos. No lugar de soldados romanos, homens de terno, identificados com faixas nas quais se lê "Poder Executivo", "Poder Legislativo", "Poder Judiciário" e "corrupção" são os que chicoteiam o salva-vida que carrega a cruz. O povo que acompanha a via crúcis é composto de migrantes nordestinos e trabalhadores injustiçados. Estes não gritam pela crucificação do Cristo, mas por justiça. A via crucis se encerra num ponto de coleta da Comlurb, com forte odor dos detritos ali descartados, muitas moscas e restos de bens perdidos na enchente, onde o salvador é crucificado. Assim foi a encenação da Paixão de Cristo nesta sexta-feira (19) pelas ruas da comunidade de Rio das Pedras, zona oeste do Rio.
"A nossa Semana Santa este ano está levando a mensagem da cruz, anunciando Cristo, Salvador da humanidade, mas junto com isso nós também estamos denunciando, porque entendemos que Jesus anunciou a verdade enquanto denunciava o erro", explica o pastor Nino, responsável pela igreja que traz a encenação. E não podia ser diferente. As ruas que servem de cenário para a tradicional Paixão de Cristo que há quatro anos os membros da Comunidade Evangélica Filhos do Rei encenam nas sextas-feiras santas, ainda trazem as marcas da tempestade que castigou diversos pontos da localidade no último dia 08, além de abrigar moradores que buscam se recuperar de suas perdas, enquanto se sensibilizam com tragédia da vizinha Muzema.
Sobre a analogia entre os militares salvadores e Cristo, o pastor Nino explica: "Os bombeiros são os salvas-vidas do nosso tempo e nós vimos esse protagonismo ao longo desta semana com o desmoronamento dos dois prédios a poucos quilômetros da nossa comunidade, um trabalho incansável na busca por vidas". Ele destaca ainda que os atores que representam os três poderes do Estado democrático e a corrupção são os responsáveis pelo sofrimento dos mais desfavorecidos nos últimos anos, enquanto os outros caracterizados de nordestinos, representam os trabalhadores que predominam em Rio das Pedras, Muzema e muitas outras comunidades do Rio.
"A via crucis é a mesma mas o uniforme é para alertar as pessoas para o que está acontecendo à nossa volta. É o próprio Jesus presente em todas as situações e a misericórdia de Deus em todos os lugares. Trazer essa simbologia no dia da crucificação foi importante para que as pessoas entendam que há um Salvador, que Ele veio para trazer vida e, mesmo com todas as dificuldades da nossa comunidade e do nosso país, Cristo ainda é o Salvador", defende o pastor Jorge Luiz que pelo quinto ano interpretou Jesus.
Emoção e impactos da mensagem da cruz nas ruas e becos de Rio das Pedras
No primeiro trajeto após a saída do ponto de concentração, no número 1000 da estrada de Jacarepaguá, a babá Larissa Correia, 25 anos, passava pela rua com seus três filhos e se mostrou impressionada com abordagem que não esperava ver. Aliás, era mora em Rio das Pedras há três anos e sequer sabia que existia encenação da Paixão de Cristo na comunidade. "Achei estranho de primeira mas olhando melhor, acho que está retratando a realidade, é isso o que vivemos", opina a moradora contando ainda que no dia da chuva forte andou desde a Gardênia Azul, cerca de seis quilômetros, enfrentando mais de um metro e meio de água em alguns pontos da favela, para buscar os filhos de um, quatro e seis anos na creche.
Já na metade do percurso da encenação, no local da comunidade conhecido como Rua Velha, na porta de uma sapataria, Paula Diniz, abraçada à sua filha de 08 anos, se envolveu com a cena a ponto de entoar o cântico dos atores e membros passante. Ela é moradora da Praça Seca, zona norte, e estava tomando conta da loja que pertence à avó da sua filha. "Nossa, foi de arrepiar, fiquei emocionada porque não esperava que passaria por aqui uma encenação da Paixão de Cristo". Fazendo alusão aos versos que eram entoado na cena, ela mandou um recado de reflexão sobre a Páscoa: "Cristo vive. As pessoas, sem dúvida, podem crer num amanhã melhor com Ele".
Para fugir de um trecho impossível de passar devido a água de esgoto que ainda inunda a rua, em um trecho da localidade conhecida como Areinha, a equipe da encenação precisou pegar uma rota alternativa não prevista no trajeto. Era um beco transversal chamado de rua das Romãs. Ali, a moradora Cristina Faria se comoveu ao ver a cena. "É a primeira vez que passa nesta rua esse trabalho da Páscoa, estou emocionada e com vontade de chorar", disse a moradora.
O pedreiro Antonio Benjamin é membro da igreja há 12 anos e sempre acompanha a procissão de Páscoa. Mas foi a primeira vez que topou se caracterizar como personagem. Vestido como lavrador, portando enxada e com chapéu de palha na cabeça, ao final do trabalho ele contou seu sentimento nesta sexta-feira santa:
"Foi uma sensação única porque estamos de certa forma contando a nossa história de povo nordestino que vem buscar vida melhor e chega aqui encontramos o que nos resta e vocês viram ao nos acompanhar - lixo, becos alagados, lamas e esgoto nas vielas - tudo resultado de descaso do poder público. São dificuldades que Jesus passou no passado e nós nos pegamos passando também nos dias hoje", concluiu o cearense que está no Rio há 30 anos