Usar lentes de contato é a solução para muitas pessoas que não conseguem conviver com os óculos, além de ser muito mais prático. Mas o uso indiscriminado delas pode esconder um perigo inimaginável: os olhos ficam mais sensíveis e é aí que um parasita, de nome estranho, se aloja e pode causar sérios danos, inclusive a cegueira: o Acanthamoeba, leva a ceratite, uma infecção de difícil diagnóstico (podendo, inclusive ser confundido com herpes ocular) e que faz com que as pessoas tenham sua vida completamente modificadas.
Débora Rosário, 44 anos, cabeleireira, Juliana Correia, 27 anos, estudante de nutrição e Mônica Batista, 41 anos, biomédica, não se conheciam, mas tinham um hábito recorrente em comum: usavam lentes de contato para tudo. As três foram surpreendidas pela ceratite e apenas Mônica não precisou recorrer ao transplante de córnea. Um dos sintomas da ceratite é a fotofobia, ou seja, a pessoa não consegue ficar em ambientes claros, os olhos doem e as dores de cabeça são intensas.
"A vaidade de não gostar de usar óculos me fazia ir de lentes a praia, piscina e banho de chuveiro. Então uma ameba comeu minha córnea. No período inicial passei mais de três meses em um quarto escuro, a fotofobia era intensa. As dores eram de enlouquecer", conta Débora.
Já Juliana não conseguia chegar perto da janela, de tanta dor nos olhos.
"Até a luz da lâmpada me incomodava, não conseguia sair do meu quarto. Abrir a janela? Quase acabava comigo!", ressalta Juliana.
Paulo Philippe Moreira, especialista em córneas e doenças externas, e médico de Débora, afirma que a infecção pela Acanthamoeba ocorre quando há o contato do parasita com um olho com barreiras de defesa diminuídas.
Por exemplo, o uso de lentes de contato é um dos principais fatores de risco para esta infecção (alguns trabalhos científicos atrelam a maior parte dos casos a utilização de lente de contato).A Acanthamoeba pode ser encontrada em água livre, água de torneira, água de piscina, cachoeira e outros. Uma das formas associadas a infecção é justamente o contato de água com a lente de contato, seja durante o uso, ou no momento que se tenta a desinfecção desta antes do uso diário",explica.
Nem sempre o diagnóstico é simples. Tanto Mônica, quanto Débora e Juliana passaram por diversos oftalmologistas até que se chegasse no diagnóstico correto. Juliana passou meses tratando uma herpes ocular que não existia. Mônica peregrinou por vários médicos, usou diversos remédios e colírios para infecções que não melhoravam. E Débora precisou trazer colírios importados para tentar resolver seu problema. Com isso, o psicológico das três ficou abalado. Mônica conta que ficou dois meses sem sair de casa, emagreceu demais, ficando, como ela mesma descreve, uma "caveira".
"Era uma dor que eu não desejo pra ninguém, não gosto nem de relembrar que me dá vontade de chorar", lamenta Mônica.
"Cheguei a ficar depressiva, tinha até medo de chorar com medo de doer o olho ou algo parecido, emagreci, minha única saída era em dia de consulta e era torturante, saia de dia com a sombrinha, óculos de sol e uma toalhinha em cima do óculos e mesmo assim era uma agonia. Deixei de ir para faculdade por conta do tratamento que era bem intenso, horários regulados e a fotofobia era tão intensa que me incomodava até a noite. Eu cheguei a usar óculos escuros até a noite porque até as luzes de dentro de casa me incomodavam," relembra Juliana.
Para o Dr. Paulo, nem sempre o transplante é a última saída. Geralmente se recorre a eles quando o diagnóstico foi tardio, como foi o caso de Débora e Juliana ou que o olho não respondeu adequadamente ao tratamento.
"Os casos que respondem ao tratamento, o olho pode se recuperar totalmente, explica Paulo.
Mônica se curou, mas ficou com sequelas, entretanto afirma preferir isso do que ter perdido para sempre a visão.
"A minha córnea está totalmente plana, ajustou-se grau para óculos. Nunca gostei de usá-los, mas entre odiar óculos e estar bem, preferi a segunda opção. Hoje tudo que acontece eu agradeço, ver minha filha sorrindo, não tem preço," completa Mônica.
Etapas do tratamento de Débora até o transplante (Arquivo pessoal)
Sintomas simples e sinais de alerta
Dor é sempre um sinal de que algo não está bem. Outros sintomas como vermelhidão, coceira e sensação de cisco devem servir de alerta para procurar o oftalmologista e sempre informar tudo, inclusive como utilizou a lente de contato, para que o médico possa diagnosticar melhor, mas o ideal é que se utilize as lentes de forma correta.
"O primeiro passo é manter consultas regulares com o oftalmologista e adaptar lentes de contato somente com o profissional habilitado para isto. Durante o uso da lente não as lavar nunca com água de qualquer procedência, realizar higienização perfeita e metódica conforme o oftalmologista orientou, nunca reutilizar a solução de limpeza e sempre higienizar da maneira correta os estojos que guardam a lente. Evitar a todo custo nadar ou entrar em piscinas, mar e cachoeiras utilizando lentes de contato. E se possível, utilizar lentes de descarte diário," aconselha Paulo.
É bom ressaltar que a doença não é comum. Foi descoberta apenas em 1971 e estima-se que no Reino Unido ocorra um caso a cada 50 mil usuários de lentes (No Brasil, o primeiro caso foi relatado em 1988 e ainda não se tem dados estatísticos concretos).
Por conta da dificuldade de encontrar quem tivesse a doença para debater e trocar informações, Débora criou uma página no Facebook, chamada Acanthamoeba Keratitis Brasil.
"Perdi muita coisa, mas ganhei muito também. Fui muito ajudada e hoje ajudo também. Qual o meu objetivo hoje? Alerta as pessoas sobre os riscos do uso de lentes de contatos. Ajudar as pessoas já contaminadas", celebra Débora.
Tanto para ela quanto para as demais entrevistadas, a falta de informação sobre os perigos do uso indiscriminado da lente trouxe consequências sérias para as suas vidas. Paulo não só concorda como ressalta que a prevenção é o melhor caminho.
"Nunca é tarde para prevenir situações como esta. A Ceratite por Acanthamoeba é altamente incapacitante, traz uma dor insuportável, que nao te deixa fazer nem as tarefas mais simples da rotina diária. O tratamento pode se manter por meses e mesmo com este pode terminar em um transplante de córnea. Pensem nisso, evitar é sempre melhor", finaliza.
Juliana também lembra que foi graças ao transplante que hoje leva uma vida normal e faz um apelo.
"Hoje vivo uma vida normal, consultas de dois em dois meses. Fiquei com um pouco de fotofobia devido aos colírios e todo procedimento cirúrgico, fiquei com pupila dilatada irreversível, porém nada perto do trauma que passei com essa ameba! Hoje enxergo totalmente normal, como se estivesse com miopia. Hoje, o óculos é meu melhor amigo, peguei trauma de lente! Então o conselho que eu deixo é esse: em hipótese alguma, nade com lentes de contato! Não durma com lentes, não tome banho! Sempre achamos que nunca acontecerá com a gente! Pois acontece sim! Lembrando que a doação de órgãos é muito importante, e foi por causa de uma que eu hoje, voltei a enxergar! Doe órgãos!", pede Juliana.
Mônica antes e depois da doença (Arquivo pessoal)
Cuidados Básicos com as lentes de contato
1 - Não dormir de lentes, por exemplo, já que elas não foram desenhadas para isso e o uso prolongado pode maltratar a córnea.
2 - Tomar banho ou nadar com as lentes também não é aconselhável - e um dos grandes motivos para se evitar isso é justamente a infecção causada pelo Acanthamoeba Keratitis.
3 - Desinfete as lentes de contato sempre: é bom deixá-las armazenadas de molho em uma solução especial e nunca reutilizar a solução desinfetante.
4 - Cuide da caixa onde guarda as lentes. Lavá-la todos os dias e secá-la depois, além de trocá-la periodicamente.
5 - E claro, sempre lavar muito bem as mãos e enxaguá-las antes de manusear as lentes