A complexidade que a Covid trouxe para a nossa sociedade é imensa. Alguns dos efeitos por ela causados somente poderão ser identificados no longo prazo. No entanto, isso não pode ser desculpa para uma preparação adequada e, se necessário, a tomada de decisões imediatas para mitigar os efeitos e danos.
Quando se trata dos efeitos da pandemia sobre o meio ambiente, precisamos ter em mente os princípios básicos da prevenção e da precaução, ambos corolários do licenciamento ambiental como forma de se atingir um desenvolvimento sustentável para as presentes e futuras gerações.
As conferências das Nações Unidas de Estocolmo (1972) e Rio (1992) já afirmavam de maneira expressa a necessidade de adoção de medidas de prevenção aos danos causados ao meio ambiente. De forma mais dogmática, a Resolução 237/97 do CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente - consagrou no art. 1º, I o instrumento adequado para este fim: o licenciamento ambiental, que conforme a Resolução é um:
“[...] procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso.”
Trata-se de um procedimento administrativo escalonado em: a) licença prévia (LP); b) licença de instalação (LI); e c) licença de funcionamento, no qual os órgãos da administração pública atestam a sustentabilidade do empreendimento (conciliação entre as demandas sociais e a preservação do equilíbrio ecológico), levando em consideração o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).
Desse modo, o desenvolvimento de algumas atividades depende do prévio licenciamento ambiental, sendo uma delas os cemitérios. A Resolução CONAMA nº 335, de 3 de abril de 2003, estabeleceu os critérios para o licenciamento ambiental dos cemitérios.
Para a concessão do licenciamento ambiental, os empreendedores ou Poder Público devem preencher os inúmeros requisitos estabelecidos pela Resolução 335, que quando da sua elaboração, levou em consideração uma situação “normal” em termos de capacidade de sepultamentos a serem realizados. Ora, se em uma situação de “normalidade” em termos de operação de cemitérios se pode constatar graves contaminações, o que se dirá em uma situação de extrema pressão de sepultamentos que a Covid-19 trouxe. A título de exemplo, cito estudo feito na Universidade federal de Alagoas, em que se constatou que no:
“[...] cemitério São José, no Trapiche, foram detectadas bactérias proteolíticas, um sinal de que a água está contaminada por necrochorume, líquido produzido pela decomposição dos corpos. "A água coletada nos poços desses cemitérios encontra-se totalmente fora dos padrões de referência para água potável, segundo a portaria 2914/2012 do Ministério da Saúde”, denuncia a pesquisadora.” (https://ufal.br/ufal/noticias/2012/06/estudo-indica-que-cemiterios-contaminam-as-aguas-subterraneas)
Somente na cidade de São Paulo, o número de sepultamentos quase dobrou em razão da doença, o que nos leva a questionar: o licenciamento ambiental aprovado para os cemitérios levou em consideração este tipo de aumento de demanda? Quais seriam as possíveis ações, se é que foram previstas, para enfrentar eventual aumento de demanda? Como anda o monitoramento dos recursos hídricos na região do cemitério após a pandemia.
Este artigo de reflexão pretende levantar a questão tendo como base a prevenção e precaução que deve estar presente quando o meio ambiente é afetado por atividades humanas. Os eventuais danos ambientais causados pelo aumento da demanda de sepultamentos são deletérios e, assim, somente em alguns anos teremos que pagar a conta de eventual omissão (assim como estamos pagando hoje a conta do aquecimento climático).