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Contágio do outro: “Formigueiro” no Cacilda Becker

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor da Escola de Teatro da UNIRIO

Em 26/08/2024 às 08:24:54

O corpo e o espaço urbano estão em evidência no espetáculo “Formigueiro”, apresentado no Teatro Cacilda Becker. Quero atravessar alguns elementos técnicos e conceituais para chegar ao que considero o essencial nessa criação cênica.

Fragmentação

Nas danças urbanas, notadamente naquelas que fazem parte da cultura hip hop, os movimentos de fluidez são justapostos a gestos precisos, retos e cortantes. Trata-se de um corpo que opera na fragmentação e aí está seu caráter mais cênico, posto que ultrapassa muito o gesto cotidiano.

Com o desenvolvimento da revolução industrial e o processo de desapropriação das terras dos pequenos produtores rurais, os camponeses são jogados nos centros urbanos, tendo sua força de trabalho como única moeda de troca para sua sobrevivência. Aglomeram-se, portanto, nas crescentes capitais. A metrópole europeia do século XIX começa a evidenciar certas imagens fragmentadas dos corpos: como a visão recortada das janelas dos transportes públicos, ou a nova velocidade da informação, que justapõe imagens que não se harmonizam de forma evidente.

Na América Latina, como nos países periféricos de maneira geral, sobretudo num país como o Brasil, que se quis e se quer uma potência, a industrialização se deu às pressas, ao longo do século XX. Nesse processo, não houve o mesmo tempo de transformação de uma população rural em proletariado urbano (a assim chamada revolução burguesa). Aqui, o contexto rural aparece, como fantasma, em meio às tecnologias da cidade grande. O que vimos ao longo do século XX, e continuamos a ver no XXI, é um grande caldeirão de vivências distintas justapostas, a geleia geral brasileira.

Nossos corpos urbanos, portanto, estão preenchidos de passado e futuro, de ancestralidade e atualidade. No espetáculo em questão, o corpo em cena é atravessado por inúmeras técnicas de dança e muitas qualidades diferentes. Um corpo fragmentado por todo esse processo histórico.

Agressividade

A imagem dos corpos dentro de manifestações culturais que se propõem como resistência ao staus quo (como é o caso da cultura hip hop) não poderia ser delicada e etérea. Essas imagens são produzidas em um contexto de país colonizado, cuja terra foi estuprada para produzir desmesuradamente para a exportação, somado a um processo de mercantilização de seres humanos, desumanizados por meio da escravização. A cultura popular, em contraponto à transcendência e à metafísica do pensamento europeu, sempre esteve ligada ao chão, a certa tomada de posição contrária à elevação, como uma crítica do céu avant la lettre.

Os corpos no krump (dança a qual se filia o coreógrafo Bruno Duarte) não parecem etéreos, evanescentes ou leves. Ao contrário, assumem a força da gravidade e a revolta. São corpos historicizados. O espectador que olha a dança krump, atribui agressividade àquele corpo. Normalmente, nas batalhas de dança da cultura hip hop a agressividade dos gestos e a força colocada nos músculos sobressaem imediatamente.

Em “Formigueiro” é operada uma “puxada de tapete” no espectador e isso é bom. A força e a agressividade aparecem, porém numa medida menor do que a delicadeza e o cuidado. Vejamos.

Delicadeza

Com a dialética que uma obra cênica precisa ter, a agressividade gestual esperada pelo espectador é transmutada. Há um olhar e um toque extremamente delicado e entregue à vulnerabilidade. A maior parte do tempo da cena o corpo do bailarino Romec opera gestos de qualidade densa, porém cuidadosa. Articulações e músculos evidenciam a delicadeza e, até mesmo, certa fragilidade do corpo humano.

A agressividade assumida na tonicidade muscular das danças de rua não é aleatória, mas uma resistência à agressividade original da acumulação primitiva e da colonização. Nos gestos curvos e sublimes das danças aristocráticas das cortes europeias há uma camada oculta de exploração e tortura, que é profundamente mais agressiva do que a evidente força das danças populares. Tal força aparece em “Formigueiro”: nas contrações e extensões do peitoral, nos saltos em espiral, no punho cerrado. No entanto, não chegam a configurar um tema tanto quanto a delicadeza na relação do bailarino com o companheiro de cena: um boneco de treinamento de luta.

Boneco

Há um boneco em cena durante a entrada do público - e ele permanecerá em cena ao longo de todo o espetáculo e, mesmo, com a saída do bailarino após os aplausos. É o único que resta. Todas as vezes que esse boneco é transportado de um lugar a outro do espaço, o bailarino coloca todo seu cuidado nesse transporte. Diria que é mais do que cuidado, a delicadeza é revelada nesse toque do artista sobre a matéria morta do manequim.

Mas essa delicadeza é construída aos poucos. Em um primeiro momento, Romec aponta o dedo indicador para o boneco, num gesto de acusação, quiçá opressão. O espectador supõe que a relação entre os dois será de tensão e violência. Em seguida, entretanto, o bailarino conduz o manequim a outro pedestal e o faz tomando todo o cuidado para logo assumir uma postura quase de devoção, se colocando abaixo do boneco.

Quero voltar a essa relação delicada porque ela está no cerne da obra. Antes, porém, é preciso voltar às discussões sobre o espaço urbano e suas representações em cena.

Coletivo

Por se tratar de um solo, a questão da massa - que é o coletivo de pessoas nas grandes metrópoles -, é evidenciado pelo corpo “só” no espaço. Em cena, um corpo vivo e um corpo morto. Fosse um espetáculo com milhares de bailarinos, como os de Ivaldo Bertazzo, ou algumas criações de Ismael Ivo, a massa de artistas preencheria por completo o espaço cênico, levando o olhar do espectador a buscar o vazio, a exceção.

Em “Formigueiro”, há o vazio escuro e um corpo solitário que fala sobre a multidão, evidenciando as lacunas e os abismos entre os cidadãos dessa população que cresce gradativamente, sem, por outro lado, ter sido preparada para a comunicação e a coabitação. Nesse sentido, o espectador, mesmo não deixando seu assento, é conduzido a se colocar naquela massa imaginada na cena. O espetáculo acarreta certo pacto entre os indivíduos na plateia, ao se sentirem parte de uma população que luta para se compreender.

Nesse sentido, o trabalho da luz e do som torna-se conceito.

Som e luz

Quase o tempo todo a luz é focada e recortada. Isso se relaciona com a irredutibilidade dos indivíduos nos grandes centros urbanos: nichos, fronteiras, limites perigosos. Ao fim do espetáculo uma grande “geral” amarelada se abre e o espaço é integralmente revelado, os dois corpos em cena estão em um terreno de imensidão, se comparado aos pequenos espaços de luz dos momentos anteriores. Isso permite ao espectador respirar um pouco depois de certa tensão.

A tensão é bastante presente na trilha sonora. Em um primeiro momento, um afro-house bastante dançante contrasta com os gestos lentos de Romec (que desconstrói lentamente gestos de hip hop, capoeira e dança contemporânea). A música eletrônica vai dando lugar a uma sonoridade mais densa, grave, criando um suspense inquietante. Os focos de luz evidenciam partes do corpo de Romec e destaco um longo momento que vemos a dança de suas escápulas.

A relação do espaço cênico (e seus elementos, como a luz e o som) com o tempo dedicado a cada proposta é um dos grandes trunfos da dramaturgia e da direção. Me refiro aos longos momentos de insistência sobre determinados gestos e compartimentos musculares. Em uma batalha de dança, por exemplo, devido ao curto tempo de apresentação, cada bailarino deve executar rapidamente sua dança e buscar gestos que produzam muito efeito sobre a plateia. Em “Formigueiro” a dramaturgia e a encenação pedem o oposto do bailarino. Ele fica longos minutos em determinado gesto, repetindo-o.

Dessa maneira, a percepção do espectador é conduzida a um outro tempo-espaço, diferente daquele do cotidiano, resultando um espetáculo com pensamento estético, muito além do virtuosismo da técnica.

Finalmente, o contágio

Os elementos descritos e comentados até aqui dão base ao que, efetivamente, resulta de todo esse acontecimento cênico: o trabalho é fundamentalmente sobre o contágio e, portanto, sobre a abertura ao outro. A agressividade do krump aparece em uma escala bem menor do que o cuidado para entrar em contato com o outro.

Romec, na última carregada do boneco, o deposita próximo ao público, no centro do proscênio. Senta-se de frente para o boneco, de modo que a plateia perde a visão de seu rosto e vê uma fusão do corpo vivo com o corpo morto. Não por acaso, o cartaz do espetáculo é o abraço desses dois corpos: essa imagem centralizada da metamorfose de um no outro, é o momento mais fotográfico.

Toda a massa que se digladia diariamente num mar de corpos e que torna imperceptível o gesto individual, em “Formigueiro” está condensada nessa relação a dois entre vivo e morto. O boneco se torna tão bailarino quanto Romec, mas de forma análoga: enquanto o bailarino é extremamente expressivo em cada músculo, o boneco emana um “véu de morte”.

Cunho o termo “véu de morte”, tomando emprestado palavras de Tadeusz Kantor, quando ele afirma que o manequim em cena (dotado de uma “mensagem de morte”) é um modelo para o ator vivo. Esse boneco “consegue [...] levantar um canto de véu”. Para Kantor, o objeto demasiado usado, que perde sua utilidade cotidiana, pode ser um objeto artístico e o manequim, por ser uma representação morta do corpo humano, amedronta a multidão nas feiras e, assim, pode nos proporcionar uma presença cênica livre da mensagem, esta última própria à tradição do pensamento estético ocidental.

É na sua falta total de expressão que está a força da presença do boneco em cena. É nesse confronto entre expressividade e sua ausência que o espectador de “Formigueiro” participa da entrega do indivíduo à massa. porque isso acontece nesse espetáculo. De fato, há uma preocupação com o que há de divino, de violento e, mesmo, de erótico entre o bailarino e o manequim.

Se eu puder me permitir uma dúvida, me parece que seria interessante aumentar minimamente a energia da agressividade e da explosão para potencializar esse cuidado e essa delicadeza do contágio de um pelo outro. Os artistas podem pensar se, na continuidade desse trabalho, essa observação pode ser levada em consideração.

Ficha técnica

Concepção: Bruno Duarte

Performance: Romec

Dramaturgia: Bruno Duarte e Tiago Oliveira

Produtor técnico: Thiago Piquet

Assistente de produção: Dandara Malvino

Produção: Adriana Lemos e Isabela Trannin – D23 Produções

Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa


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