Como discutir a proibição do corpo sem ser incômodo? Um espetáculo de dança, ou de performance, ou de dança-teatro, enfim, um espetáculo com um corpo vivo e presente diante de uma plateia começa a partir de um corpo impossível. É esse incômodo que me impulsiona a escrever.
Isto não é
Em 1928, o pintor belga René Magritte representou, minuciosamente, um cachimbo em uma tela. Com esse advérbio, quero dizer que se trata de uma representação bastante realista, que o senso comum reconheceria como “bem feita”. Embaixo dessa imagem, com uma caligrafia tradicional, escreveu “isto não é um cachimbo”. Mais: intitulou o quadro “A traição das imagens”. Sem a legenda (e, mesmo, o título) o espectador veria um cachimbo. Com o texto, o espectador se dá conta de que não pode fumar aquele cachimbo tão realista. Nem a palavra bem escrita, nem a imagem bem pintada conseguem desfazer “a traição” de ser uma coisa, ao mesmo tempo em que se é sua negação.
“Isto não é uma dança” não apresenta um número de dança que o senso comum creditaria como “exuberante”, ou mesmo “muito bom”. Não vemos as panturrilhas da bailarina, não há piruetas e saltos, não se verifica a sincronia do gesto com o ritmo da música. Temos texto, silêncio, blecaute. O espectador que não quiser “trair” o título odiará esse espetáculo. Há momentos de corpo em movimento, mas eles não são nem os mais constantes, nem os mais virtuosos. Em “isto não é dança”, a dança está em toda parte: todo material, toda técnica, é criação artística. Isto cria uma grande potência cênica.
A arte conceitual do século XX, em contraponto ao entendimento de arte renascentista (que perpetuou na academia até fins do século XIX), convoca inversões de lógica e justapõe imagem e palavra. A arte renascentista tem seu valor estético no trabalho técnico sobre a matéria bruta, quer dizer, na forma. Ao transformar a pintura conceitual de Magritte em título para seu espetáculo, Nastaran Razawi Khorasani se insere na arte conceitual e força os limites do que pode ser considerado dança.
No entanto, não há somente a dimensão estética da cena; há uma base política. Vejamos.
Censura
Trata-se de um solo de Nastaran Razawi Khorasani, mulher iraniana, que se mudou com a família para a Holanda desde a infância. A parti da Revolução Islâmica, em 1979, a dança ficou, grosso modo, proibida no Irã. Segundo Khorazani, as pessoas dançam, mas dentro de casa. Há festa e, mesmo movimento LGBT, mas no submundo (em suas palavras “no underground”).
A artista projeta, na rotunda, trechos das conversas que teve com alguns bailarino e coreógrafos que moram no Irã, bem como dos que fazem parte da diáspora iraniana. Alguns permitiram a divulgação de suas vozes, de outros ouvimos as vozes distorcidas e, muitos, não ouvimos, apenas lemos. Uma das legendas chama bastante atenção porque diz (em outras palavras) que os bailarinos dançam escondidos, dançam sempre, se reúnem para dançar, mesmo sabendo que, por isso, podem passar o resto da vida na prisão.
Algumas legendas projetadas denotam o medo de falar àquele respeito (“não quero participar do seu espetáculo de jeito nenhum”) e, também, a desconfiança por considerarem Khorasani ocidental, já que não mora no Irã há décadas.
Esses três parágrafos anteriores foram necessários para eu entender de que mirante Khorasani fala. Foi assim que eu pude entender. Eu observo (e comento) seu espetáculo de um mirante bem diferente e bastante específico: entre outras especificidades, um homem branco no Rio de Janeiro, uma cidade onde a dança está em qualquer gesto cotidiano, onde o corpo está à mostra mais do que se pode imaginar, crescido numa geração onde as crianças dançavam “na boquinha da garrafa”.
Esse espetáculo é uma recriação de Khorasani e Adriana Ortiz dentro do Festival Câmbio (Cesar Augusto e Jonas Klabin) e, nesse contexto carioca de 2024, as artistas trabalham no contraste com a explosão de cores e gestos que o Rio de Janeiro oferece (pelo menos nas suas camadas perceptíveis mais superficiais) e, possivelmente, cria identificações com o lado que não se costuma mostrar do cotidiano carioca (menos colorido, menos “permitido”, menos “galera”).
De qualquer forma, a tensão Oriente x Ocidente grita na cena. Não apenas por ser no Rio de Janeiro, não apenas pelo momento bélico das últimas décadas, mas, sobretudo, porque Khorasani é reconhecida por algum dos entrevistados como “ocidental”. Quer dizer, essa mulher com traços físicos tão característicos do Oriente Médio, com um nome e sobrenome iranianos, por não viver os estigmas diários de seu país de origem há décadas, já se tornou uma “outra”, alguém “do lado de lá”. “Isto não é uma iraniana”, essa pessoa que se recusa a dar entrevista está nos dizendo.
Nesse contexto de censura, a dança some de cena. Não falo seriamente “some”, ela está lá o tempo inteiro. Mas ela aparece no underground do palco. Está nos materiais e, também, nos gestos sutis da bailarina. Esse é o ponto que, acredito, mais faz sentido para o público da Sede da Cia. Dos Atores na sexta-feira, 29 de novembro de 2024: o espectador, acostumado aos paroxismos das formas, habituado às comidas com muito sal e muito açúcar, espera o momento que pode nomear “isto é uma dança”. E esse momento reconfortante não vem, ao menos não da maneira mais evidente.
No que diz respeito à dança nos materiais do espaço, vou comentar a seguir. Falo, agora, sobre a dança no corpo de Khorasani. Ela vai sendo construída, em meio à escuridão, aos flashes de luz, em meio às palavras projetadas e as vozes ecoadas. Vemos um corpo sendo construído e ele é bem sutil, muito delicado e vulnerável. Mas ele se ilumina em um sorriso. O corpo impossível dessa fronteira entre leste e oeste explode, delicadamente, em festa física. É dança.
Luz, tempo, espaço
A dimensão espaço-temporal é fundamental em “Isto não é uma dança” porque, posto que a dança não pode aparecer explicitamente no corpo humano, ela vive nos materiais de cena. Para exemplificar, começo pelo momento mais evidente: por meio do movimento dos refletores, a sombra da bailarina se duplica e se multiplica nas paredes, dançando, mesmo que o corpo humano esteja parado. Nesse sentido, a operação de luz é uma real parceira da bailarina e nos diz que “isto não é um corpo”, são vários corpos.
Quando digo “movimento dos refletores”, me refiro à operação da iluminação porque o objeto-refletor não se move. Há uma fileira de refletores na ribalta, como uma artilharia diante de um paredão de fuzilamento, remetendo (nesse contexto de censura), mesmo que involuntariamente, a pinturas famosas como a de Manet e a de Goya. Os refletores vão atirando contra o corpo imóvel de Khorasani e produzem sombras extremamente dançantes.
Indo mais profundamente na questão do tempo e do espaço, a luz estroboscópica produz imagens fotografáveis do corpo no palco, como fragmentos do movimento. A luz estrobo estratifica o tempo. Muito já se escreveu sobre o movimento (na dança, no cinema, etc...) e sua relação com o tempo. O recorte fotográfico retira um pedaço do fluxo temporal.
No “Laocoonte” (1766), Lessing divide as artes do tempo (das quais a poesia) e as artes do espaço (como a pintura). É um texto inaugural para dividir cada área artística em uma prática de apreciação distinta. É claro que, há mais de um século, já teorizamos o atravessamento das fronteiras entre as artes, mas retornar ao século XVIII nos permite ter consciência desse atravessamento. Já voltaremos à dança de Khorasani, mas, ainda no fim do século XVIII, agora no âmbito da cena teatral, Diderot oferece o conceito de “quadro” e Lessing, o conceito de “momento pregnante”. Ambos os conceitos falam sobre a suspensão do tempo da cena em uma, digamos, “foto” (antes de existir essa técnica). O quadro e o momento pregnante suspendem o fluxo temporal em um momento fotografável.
Essa sistematização do fragmento é importante para “Isto não é uma dança” porque, ali, o tempo e o espaço estão problematizados. Cada fragmento de movimento que o espectador vê pela luz estroboscópica contém uma pluralidade de temporalidades e espacialidades. O flash de imagem é tão rápido que produz uma síntese dos significados do movimento – e quem cria essa síntese é o espectador. Há muitas histórias de censura que acontecem na dança de Khorasani sob o estrobo. Nossas biografias se misturam aos fragmentos biográficos projetados na rotunda.
Escuta
Outra dimensão da dança nesse espetáculo é a escuta. Uma vez que a dança não pode se manifestar de maneira evidente, os áudios na escuridão da cena nos levam a outro tipo de coreografia.
O espetáculo começa pelo som. O público entra e a performer está em cena, mas de maneira bem informal, ajeitando o tecido no chão. Há um blecaute e começamos a ouvir uma ligação na qual a artista conversa com um de seus entrevistados. A escolha por não começar pelo visual, pela sedução do corpo em cena, é um posicionamento: não vai haver demonstração de virtuosismo para seduzir a plateia.
Ao longo do espetáculo, as vozes dos entrevistados (que falam sobre dança) vão sendo justapostas à música eletrônica, uma música bem dançante. São dimensões coreográficas que vão nascendo aos poucos, antes do corpo humano poder se soltar no espaço cênico. É no terreno sonoro que a dança começa, quer dizer, antes do corpo se mostrar, visualmente, dançante, a dança se faz presente na escuta.
Os áudios dos coreógrafos da diáspora iraniana transformam o corpo por meio da escuta. Eles não apenas dizem porque dançam, mas como dançam. O “porque” é claramente político, mas o “como” traz algo de individual, traz a poesia. Ao nos deixar ouvir os áudios iranianos, Khorasani nos permite ver uma espécie de duo dançado entre ela e cada coreógrafo. Mais além, nós mesmos entramos em algum nível de dança com eles. A dança, justamente quando ela se coloca nessa arte conceitual, contagia e incorpora nos corpos.
Antes
Quando a dança é proibida aos corpos humanos, podemos colocar a luz sobre todos os outros corpos que existem e que dançam (as folhas ao vento, a água trepidando, os animais, ou o som...). Quando não se pode dançar, os elementos do espaço e do tempo dançam e, assim, nosso corpo pode voltar a ter a permissão da dança. “Voltar” porque a dança vem antes.
FICHA TÉCNICA
CÂMBIO
Direção e Curadoria: Cesar Augusto e Jonas Klabin
Assessoria de Imprensa e de Mídias Sociais: Paula Catunda e Rafael Teixeira
Programação Visual: Gil Filho
Coordenação Administrativa e Financeira: Cristiane Cavalcante
Realização e Produção: Oz Produções Artísticas, Musicais e Cinematográficas Ltda. e Treco Produções Artísticas Ltda.
Residência artística: "Isto não é uma dança"
Coreografia: Nastaran Razawi Khorasani
Iluminação e Cenografia: Adriana Ortiz
Assistente de Iluminação: Bernardo Bastos
Produção Sede da Cia. dos Atores: Duh Pessanha
Produção Executiva: Vic Faccin
Operador Técnico: Bernardo Bastos
Serviços Gerais:- Carlos Eduardo/Lilinho