Uma mulher se despe de sua camisa e está diante do público sem maquiagens, apenas uma saia cinza e seus cabelos brancos. Seu corpo conta todos os dedos de uma mão – se os dedos correspondessem a décadas. Esse corpo existe e, colocado no espaço extracotidiano da cena, confronta o espectador em seus imaginários mais antigos, seus arquétipos da terra, da mãe, do cosmo. Ela puxa um imenso plástico cinza do chão e, com o apoio das próprias mãos, ele vira um gigante vestido tomara-que-caia (ou tomara-que-gaia). Como o grande plástico tinha servido como imagem do oceano, algumas cenas antes, ela parece uma deusa aquática num mar cinza, uma Iemanjá ultrajada pelo pecado original do Homem: não aquele de Adão e Eva, mas o pecado original da desconexão do humano com o cosmo. A deusa vai traçando uma diagonal até a direita baixa e se dissolve dentro do próprio plástico, como engolida por uma onda.
Em certos momentos do espetáculo “Cosmofobia”, outras mulheres saem do coletivo de mulheres em cena para assumirem esses totens, essas imagens divinas. Destaco uma mulher sentada em padmasana (a posição de lótus), enquanto suas companheiras de cena vão cobrindo-lhe inteiramente com agrupamentos de sacos plásticos, até que ela perca sua forma humana e vire um grande arbusto plástico com um aparente cocar indígena. Mais tarde, outra mulher é coberta com o grande plástico cinza e, por segurar muitos objetos-lixo nos braços, ganha uma forma triangular, como o manto de Nossa Senhora Aparecida.
São rápidas suspensões no trabalho de coro (que é o prioritário nesse espetáculo), como cumes de montanhas acima das nuvens.
Foto: Raquel Botafogo
Fio branco sobre malha cinza
O corpo de “Cosmofobia” é coletivo, é uma variedade de tamanhos e idades dentro de um só corpo-grupo. A quantidade de cabelos brancos em cena chama a atenção e conduz o espectador a outro lugar, que ele não está acostumado a habitar: uma cena com muitas bailarinas maduras. Eu contei 24 mulheres no total e, muitas delas, prateadas. 24, como nosso ano. É preciso lembrar que, se os cabelos são brancos há uma estrutura física que acompanha, não se trata de bailarinas de 20 anos querendo provar todo seu virtuosismo técnico. A escolha é por outro corpo. E a quantidade de corpos em cena faz muita diferença, sobretudo em um contexto que, pela impossibilidade financeira de arcar com muitos cachês, os projetos priorizam solos, ou poucos bailarinos/atores.
Quando o espectador entra no teatro, já habitam as escadas de madeira do Teatro Cacilda Becker mulheres com galões de água. Vazios. Todas de cabelo branco e vestido cinza. É um coro. O “quadro” remete à peça e ao filme “As Troianas”, quando as mulheres de Tróia (vencidas na guerra), desesperadas de sede, vêem os guardas levando água potável para banhar o corpo de Helena. Ali, no palco carioca, são as troianas, de Sêneca; são as mulheres de Atenas, de Chico Buarque. É a crise da água.
Nesse sentido, a malha cinza do figurino é uma grande parceira da encenação porque, além de oferecer uma neutralidade elegante (que tira o espectador do cotidiano), reforça o coletivo com essa qualidade de coro grego durante a guerra. As três exceções de malha preta não são ruins, elas reforçam, pelo contraponto, a massa cinza da maioria. São respingos de petróleo no palco, logo na semana em que o ex-novo presidente dos US viralizou falando a frase “drill, baby, drill”. Lá vamos nós para mais perfurações e, talvez, vazamentos de óleo e gás.
Foto: Paula Kossatz
Biblioteca do consumo e do descarte
Na primeira cena do espetáculo, há dois grandes volumes plásticos na área principal da cena, mas não estão inanimados, é possível prever que alguém respira ali dentro. O maior volume se abre em uma grande lona plástica (já mencionada), preta de um lado e cinza do outro. Esse grandioso tecido cobre o outro volume. O espectador se vê diante de um mar revolto, com corpos femininos sendo arremessados em várias direções.
Essa imagem, logo no início do espetáculo, remete a inúmeras montagens de “A Tempestade”, de Shakespeare. Lá também há um naufrágio em um mar que engole os europeus, conduzindo-os ao novo mundo. Aqui, há tsunami e há pororoca amazônida. Na peça do bardo inglês, o mirante é o do colonizador que escraviza os nativos do novo mundo. Aqui, o corpo feminino maduro toma para si a voz.
Em um efeito cênico muito bem realizado, o volume plástico que foi engolido pelo amplo tecido preto é revelado com muitas mulheres que estavam o tempo todo debaixo do tecido.
A partir daí, inúmeras dinâmicas coletivas são estabelecidas. Cada bailarina tem um agrupamento de sacos plásticos e desenvolve gestos e movimentos de delicadeza visual, ainda que a temática seja catastrófica. Distopia e poesia. A encenação justapõe destruição e beleza. Se os corpos caem “mortos” frequentemente e são cobertos por um excesso de sacos plásticos, eles também dançam e usam o plástico como saia esvoaçante, tornam-se seres aquáticos, etc.
As bailarinas formam uma fila, ombro a ombro, de frente para a plateia, e puxam o grande tecido plástico cinza, subindo uma “parede” que as cobre. Desse muro, nascem movimentos coletivos em linha. Todas essas dinâmicas lembram “Biblioteca do corpo”, coreografia do saudoso Ismael Ivo. Ambos os espetáculos tem muitos corpos em cena, alternam dinâmicas coletivas em linhas e em blocos individuais e passeiam por uma atmosfera apocalíptica.
Desconfiança do cosmo
Em um contexto no qual ser rico e feliz correspondia a ser gordo, o escritor Rabelais criou o monstro gigante Gargantua que, desde bebê, devorava desmesuradamente todas as comidas e bebidas. Gargantua associava seu apetite glutão ao apetite sexual e, desse modo, não via limites para o desejo de consumir comida, bebida e sexo. Em nossa atualidade, ser rico não significa mais ser gordo, ao contrário, tendemos à gordofobia e transferimos a falta de limites para o consumo de produtos industrializados. Plástico não é a comida, mas é a embalagem da comida. De todas as comidas, mesmo as que não entram pela boca. O ironicamente trágico é que hoje temos microplástico na comida, bebida e no leite materno.
Em “Cosmofobia”, há corpos individuais puxando, carregando, ou manuseando seu próprio punhado plástico. Isso resulta bastante interessante porque vemos um coletivo formado de indivíduos irredutíveis, que é nosso processo histórico ocidental. Nas aldeias, antes da lógica branca se instaurar, não havia propriedade e acumulação. Os acúmulos de embalagens plásticas revelam, cenicamente, o desespero de uma civilização para juntar lixo e brigar para que ele não seja roubado pelo outro.
O termo “cosmofobia” se relaciona com a imagem de um humano que busca assepsia porque não se reconhece como parte do reino animal, por isso mata qualquer vida que se aproxime de sua propriedade e escraviza minerais, vegetais e animais. Entretanto, há uma imagem no espetáculo que vai além dessa compreensão: um corpo trazido sobre um carrinho de transportar bagagens. Esse corpo está com a metade de cima coberta por um saco plástico preto e é jogado ao chão. As bailarinas vão passando por cima da parceira “morta”, jogando seus “lixos” sobre ela.
A encenação, dessa maneira, diz que o humano não mata apenas os outros animais, mas também prevê o extermínio do próprio humano. Nós criamos mais uma camada de “outro”, algum humano com quem não nos identificamos. Dentro do mesmo grupo humano há “outro” que eu considero menos humano e que deve morrer. As dinâmicas individuais (mas dentro de um coletivo de mulheres em cena) revelam essa desconexão própria da cosmofobia, de que fala Antônio Bispo: armazenar por desconfiança.
Limiares sutis
O que é interessante no espetáculo é conseguir dar forma a uma temática que está na ordem do dia, sem explicar cada detalhe. As desconstruções da temática ecológica em movimentos contemporâneos são inteligíveis e dialogam com a plateia. Quando a encenação começa a andar por um terreno mais figurativo, a cena fica menos sofisticada, mas nada grave. É o caso da mulher que implora por ajuda, enquanto outra tira selfie.
A cena final quase desagua também em certo figurativismo por combinar elementos mais sublinhados de emoção: a iluminação em feixes, como os clarões de pinturas barrocas com alegorias bíblicas, somada a uma música com vozes etéreas, mais um gestual coletivo delicado. O que impede de cair num exagero emocional é o corpo das bailarinas, que está totalmente entregue, sem máscaras. Isso é bastante emocionante e necessário.
O resultado é muito interessante e deve ser visto ainda por muitas plateias dentro e fora do Brasil.
FICHA TÉCNICA
DIREÇÃO GERAL
Marcio Cunha
INTÉRPRETES CRIADORAS
(Grupo de Pesquisa e Criação)
Angela Carpi, Carla Stank, Clara Fischer Gam, Claudia Mattos, Conchita Pazo, Débora Miranda , Fernanda Kut, Fernanda Telles, Jeany Amorim, Joana Carelli, Juliana Nogueira, Leca Scilla, Lia Alencar , Lucia Casoy, Márcia Maravilhas, Márcia Pedro, Maria Luiza Borba, Mariane Canella, Mônica Fixel, Rebeca Azevedo, Roberta Garcia e Yve Breder Sinder, Fernanda Vieira, Regina Celi Zandonadi.
DESIGN DE LUZ
Juca Baracho
COLABORAÇÃO ARTÍSTICA
Raquel Botafogo
Ana Carolina Constantine
FILMAGEM
Guto Neto
Jorge da Silva Gomes
FOTOGRAFIA
Patrícia Verbicario
Paula Kossatz
Ana Gilbert
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO
Cacau Gondomar