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Avanço da pandemia no Rio supera outros países

Estudos acadêmicos apontam contágios pela Covid-19 nove vezes superior aos confirmados e Brasília passando São Paulo e Rio em total de casos, até abril

Por Portal Eu, Rio! em 25/03/2020 às 21:01:25

Medidas como o fechamento de repartições públicas e do comércio reduziram a lotação do metrô no Rio de Janeiro, mas não afastaram temor da Covid-19 Foto Agência Brasil

A COVID-19 avançará em certas partes do Brasil de uma forma mais rápida do que a maioria das previsões indica. Simulações de estudo apontam que nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília o vírus pode estar se propagando muito mais rapidamente do que se projetava há cerca de 20 dias. Essas três cidades atuariam como eixos de disseminação da infecção para outras partes do país. A situação atual sugere que estamos à frente de um cenário com gravidade sem precedentes na

história recente do país. As análises são do especialista em modelagem computacional Domingos Alves, líder do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP/USP), que vem trabalhando com pesquisadores de diversas universidades no Brasil.

Os dados constam de uma nota técnica elaborada por cientistas da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de Brasília, três das instituições líderes em pesquisa, formação de doutores e trabalhos publicados em revistas científicas internacionais. No momento em que terminavam a redação da nota técnica, os pesquisadores encontravam um quadro em que o País apresentava mais de 2.200 casos e 47 óbitos por COVID-19, apenas cerca de duas semanas após a confirmação da transmissão comunitária da infecção nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Na quarta-feira, 25 de março, quando foi liberada a publicação, esses números haviam subido para 57 mortes e 2433 casos confirmados. Cifras defasadas no momento mesmo que foram divulgadas, pois o Estado do Rio contabilizava naquele instante duas vítimas da doença.

O grupo interdisciplinar enfatiza a gravidade do quadro e a urgência absoluta de aprofundar as medidas de isolamento social. O inimigo, além de microscópico, se multiplica além da capacidade de detecção e contagem instalada em países do G-8, como a Itália e os EUA. No Brasil, em que pese o Ministério da Saúde anunciar um esforço de importação de kits e do rápido avanço de pesquisas para desenvolver exames sorológicos locais, o quadro é ainda mais preocupante. A nota técnica cita um estudo da London School of Hygiene & Tropical Medicine, na Inglaterra. Pelo trabalho, os casos notificados no Brasil representam aproximadamente apenas 11% do total. As pessoas infectadas no País passariam de 20 mil.

A maior parte delas não apresentaria sintomas, 85% de acordo com a pesquisa mais abrangente, feita na China, origem da pandemia. Menos que uma 'gripezinha', um 'resfriadozinho'. O caso é que esses 85% representam nada menos de 79% das transmissões da doença. A razão de transmissão calculada, sem o controle dos deslocamentos e contatos, é de quatro para um. Esses vinte mil podem, portanto, contaminar 80 mil. Proporção que em pouco tempo passa para a casa do milhão e da dezena de milhão. As internações não ultrapassam 15%. Só que nessa escala, é mais do que suficiente para colapsar qualquer sistema de atendimento, conforme advertência repetida do próprio ministro da Saúde, Henrique Mandetta. O desafio proposto pela maioria dos especialistas e pela Organização Mundial de Saúde é tornar esse processo mais lento, para evitar o colapso do sistema hospitalar pela internação simultânea de um número de doentes muito superior à capacidade.

A nota técnica não faz por menos: "Assim, estamos vendo apenas a ponta de um grande iceberg. As mais recentes análises da evolução da epidemia permitem prever uma situação gravíssima à medida que a transmissão sustentada se estabeleça definitivamente em todas as capitais e nos municípios do interior do país, atingindo as populações mais vulneráveis."

Mesmo os endereços mais prósperos, abrigando as pessoas mais influentes e poderosas, tem razões para apreensão. "Os pesquisadores chamam a atenção para o fato de Brasília, apesar de ter um número menor de casos em relação a São Paulo até o momento, apresenta um risco de infecção maior, quando se leva em consideração o tamanho da população que pode ser infectada, e não apenas a contagem de casos. Pelo critério do número de casos por cem mil habitantes, em pouco tempo a capital federal tomaria da cidade mais rica do País, a mais globalizada e destino de mais vôos, a liderança indesejada do ranking da Covid-19. O trabalho destaca que considerando não apenas o número de casos confirmados de COVID-19 mas o risco para a população de cada cidade, o número de casos acumulados em Brasília poderá, nas próximas semanas, superar o registrado em São Paulo. Grosso modo, com arredondamento, a capital federal alcançaria em abril 19 mil casos, bem mais que São Paulo (10 mil) e Rio de Janeiro (6 mil).

Há mais do que raciocínio eleitoral e vaidade na corrida entre os governadores para decretar o fechamento do comércio ou antecipar férias escolares. Os dados citados na Nota Técnica deixam pouca margem para dúvida e muita para preocupação. "De acordo com os registros oficiais do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), por exemplo, o Distrito Federal possui um total de 6.705 leitos hospitalares (3.959 públicos e 2.746 privados) e 1.668 leitos de cuidados intermediários e intensivos (383 públicos e 1.285 privados). Em um cenário mais grave, onde essa projeção de casos se confirme no Distrito Federal, estima-se que possam ser necessários muito mais leitos hospitalares e leitos de cuidados intensivos para o atendimento de casos confirmados da doença.

Ainda de acordo com a nota técnica, tais estimativas são consistentes com o percentual observado na Itália, conforme a Nota Técnica 2 – emitida pelo Núcleo de
Operações e Inteligência em Saúde (Nois) em 17/3/2020. A Itália recebeu o vírus em seu território depois da China, e em menos tempo alcançou o 'maledetto' primeiro lugar na contagem de mortos. Cenas só vistas na II Grande Guerra, de caminhões do Exército recolhendo para cremação corpos sem velório, se repetiram. A evolução dos números projetados para a capital ajudam portanto a explicar porque Ibaneis Rocha, sob críticas à época do Ministério da Saúde, dado o atropelo da medida editada na quinta para vigência na sexta- correu para suspender as aulas. Os números, os pesquisadores não cansam de repetir ao longo da nota técnica, "só reforçam a necessidade de medidas de supressão da transmissão da COVID-19. Assim, medidas amplas de isolamento, quarentena e restrição do contato social são fundamentais para que possa ocorrer uma desaceleração da propagação da epidemia".

O texto não faz menção direta a pressão empresarial pelo fim do isolamento ou as sucessivas farpas lançadas pelo presidente da República em direção aos governadores que restringiram a circulação de pessoas e até extrapolaram suas funções, tentando proibir o pouso de aeronaves, por exemplo Wilson Witzel, do Rio. Repete à exaustão, contudo, que a supressão da circulação e a transparência das informações são essenciais para reduzir o custo em vidas e em dinheiro da pandemia. "No intuito de traçar projeções mais confiáveis e tomar as medidas mais apropriadas no combate à COVID-19, é estratégico para os gestores locais e para a população conhecer, em nível municipal e estadual, a progressão do número de casos confirmados e suspeitos, óbitos e pessoas que se recuperaram, " advertem.

Os pesquisadores classificam de preocupante a decisão do governo federal de não registrar mais os casos suspeitos após a transmissão comunitária (quando não se consegue mais detectar a origem de um contágio) ter sido declarada em todo o país. Para o grupo, a medida torna ainda mais difícil a avaliação da progressão da epidemia e dos efeitos das ações de controle implementadas. Esse cenário mostra, portanto, que é essencial o uso de plataformas que atualizem, de forma acurada e em tempo real, essa previsão. "Informação e transparência são cruciais para conter a COVID-19 e salvar vidas. É a medida adotada por todos os países nesse momento de pandemia," enfatizam.

Um relatório do grupo de pesquisa da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getulio Vargas (EMAp/FGV) em conjunto com o Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (PROCC/Fiocruz) reforça essa percepção, de acordo com a nota técnica. A alta conectividade aérea de São Paulo e Rio de Janeiro coloca essas cidades como polos de disseminação da doença para outros centros urbanos, reforçando a ideia de que ações imediatas de restrição da mobilidade da população nessas cidades podem ter impacto na difusão da epidemia para outras partes do país.

Ainda de acordo com o estudo FGV/Fiocruz, os centros urbanos das regiões Sul e Sudeste, além das capitais Recife e Salvador, têm grande probabilidade de acumular casos graves em curto prazo. Em um segundo momento, prevê-se a disseminação da COVID-19 para a região litorânea entre Porto Alegre e Salvador e para várias microrregiões da Paraíba, Ceará, Pernambuco, Cuiabá,Goiânia e Foz do Iguaçu. As microrregiões que possuem alto risco de epidemia a curto prazo e alta vulnerabilidade social para ações imediatas se concentram nos estados do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Bahia.

Em paralelo, destca a Nota Técnica, análises preliminares realizadas por pesquisadores da Faculdade de Medicina da UFRJ e da Fiocruz Bahia estimam que a velocidade de transmissão do vírus no estado do Rio de Janeiro pode ser bem maior que a registrada em outros países.

O panorama apresentado por esses diferentes grupos reforça nos autores da Nota Técnica a percepção de que, a despeito de alguns governadores no Brasil estarem tomando medidas mais ousadas, já deveríamos ter implantado a estratégia de contenção e supressão em vários municípios, ações implementadas pelos países acometidos pela COVID-19. As experiencias relatadas em regiões da China e da Itália demonstram, para os pesquisadores, que a efetividade dessas medidas é maior quando iniciadas precocemente, quando o número de casos suspeitos e confirmados está baixo. A hora de consertar o telhado é quando faz sol.

A importância das estratégias não-farmacológicas de combate à COVID-19 foi publicada pelo grupo de pesquisadores do Imperial College de Londres, em 16 de março de 2020
(DOI: https://doi.org/10.25561/77482). Os autores analisaram, por modelagem, o impacto de medidas de supressão da epidemia nos EUA e na Inglaterra. Tornou-se consenso que duas estratégias fundamentais são possíveis, a supressão e a mitigação.

De acordo com o trecho do estudo britânico citado na Nota Técnica: "Nas políticas de mitigação, que combina o isolamento domiciliar de casos suspeitos, quarentena domiciliar de pessoas que moram na mesma casa que casos suspeitos e distanciamento social de idosos e outras pessoas com maior risco de doença grave, é necessário prover diagnóstico para todos os suspeitos de modo rápido e eficiente. Tais medidas podem reduzir o pico da demanda de assistência médica em 2/3 e o número de mortes pela metade. Entretanto, é esperada a ocorrência de centenas de milhares de mortes e a constante sobrecarga dos sistemas de saúde (principalmente unidades de terapia intensiva)," alerta o grupo do Imperial College.

Já nas políticas de supressão, adotadas tardiamente por Boris Johnson, mas a opção política preferida dos pesquisadores do Imperial College, pode-se adotar odistanciamento social intermitente, permitindo que algumas intervenções possam ser revistas periodicamente em janelas de tempo relativamente curto, mas tais intervenções precisando ser reintroduzidas se/ quando os números de casos se recuperarem.

O distanciamento social intermitente somente poderá, portanto, ser adotado com o monitoramento dos casos suspeitos e de casos fatais com COVID-19 em todos os municípios e estados, em tempo real. Capacidade presente, sob diferentes regimes políticos mas sempre em proporção espantosa aos olhos ocidentais, na maioria dos países asiáticos em que o estrago da pandemia foi menor, como Taiwan, Coréia do Sul e Singapura.

A Nota Técnica é assinada em ordem alfabética pelos onze pesquisadores que a elaboraram. A saber, Afrânio Kritski - Medicina -UFRJ; Domingos Alves - FMRP-USP;Guilherme Werneck - Iesc - UFRJ; Ivan Zimmermann, UnB;Mauro Sanchez - UnB; Rafael Galliez - Medicina - UFRJ; e Roberto Medronho - Medicina - UFRJ.

Na conclusão, um apelo para que o governo federal volte a divulgar informações da COVID-19, suspensas desde 21/3/2020. Desse modo, as universidades, institutos de pesquisa, e organizações das Forças Armadas poderão auxiliar o governos federal, estadual e municipal no monitoramento da transmissão da COVID-19, informando aos gestores e à população asperspectivas futuras e a revisão de medidas de combate.

O último parágrafo combina uma advertência sombria e uma profissão de fé no ofício abraçado pelos autores, a pesquisa científica: "Qualquer atraso na implementação das ações pode implicar em repercussões muito graves, com número crescente de óbitos e aumento substancial da dificuldade para controle da transmissão, a médio e longo prazo. Por isso, é fundamental que todos fiquem em casa. Reiteramos a importância da ciência para a manutenção da vida humana".

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