O Ministério Público Federal (MPF) iniciou ação na Justiça Federal em Belém pedindo que o governo brasileiro seja obrigado a seguir o regramento legal estabelecido no país para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus e se abstenha de emitir discursos e informações falsas que enfraqueçam o isolamento social necessário para reduzir a velocidade de contágio da covid-19.
“A União, por meio de seu representante máximo, o presidente da República, não pode expor a risco o direito à saúde das pessoas, expor toda a sociedade a risco, recomendando a retomada das atividades cotidianas, a reabertura dos comércios etc, diante da pandemia da covid-19, contrariando todas as evidências científicas que apontam em sentido contrário”, dizem os 20 procuradores da República que assinam a ação.
O MPF sustenta que as contradições no discurso do governo, com orientações do ministro da Saúde sendo desmentidas pela Presidência da República quase diariamente, criam um clima de insegurança sanitária que pode provocar milhares de mortes. O problema pode ser corrigido “pela publicação nos canais oficiais dos órgãos da demandada, bem como na conta do Twitter do presidente da República, de orientações e indicações sobre a necessidade imprescindível de isolamento social, enfatizando-se as medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e referendadas pelos órgãos técnicos do Ministério da Saúde”.
A ação pede que a Justiça assegure informação correta à população obrigando “a publicação de orientações e indicações sobre a necessidade imprescindível de isolamento social nos sítios eletrônicos do Planalto e ministérios, bem como nos canais oficiais nas redes sociais, aplicativos de mensagens e qualquer outro canal digital, com destaque na página inicial; publicação no perfil do Twitter do presidente da República de sequência de tuítes com as orientações sobre isolamento social, que deverá ser mantida como tuíte fixado do perfil; e por fim condenar a União a elaborar um plano de comunicação e utilização de contas em redes sociais por seus agentes públicos, que obedeça ao direito à informação e ao princípio da transparência da administração pública”.
Desde que o Congresso Nacional estabeleceu situação de emergência em saúde pública no Brasil, com a aprovação da lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a autoridade maior do país vem sucessivamente emitindo discursos e orientações por meio de declarações à imprensa e nas redes sociais contrárias às medidas para contenção da pandemia. A ação enumera 12 ocasiões em que Jair Bolsonaro (sem partido) falou contra o isolamento social ou tentou minimizar a gravidade da pandemia, tanto em pronunciamentos oficiais quanto em suas contas no Twitter e no Facebook. Também é mencionada a campanha do governo brasileiro, publicada nas contas oficiais da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, com o slogan “O Brasil Não Pode Parar”, que foi suspensa por ordem da Justiça Federal no Rio de Janeiro.
Petição lembra campanha 'Milão não fecha' e explosão de casos no Norte da Itália, com colapso hospitalar
O MPF lembra que campanha similar foi idealizada por uma associação de bares e restaurantes em Milão, na Itália, com adesão de governantes locais e, como consequência da recusa em fechar o comércio de produtos e serviços não essenciais em um momento em que o contágio pelo novo coronavírus avançava silenciosamente, a região virou o epicentro mundial da pandemia de covid-19 e o país experimentou tanto o colapso dos serviços de saúde quanto uma quarentena ainda mais rigorosa, que ainda não terminou.
“O governo federal, intencionalmente ou não, replica a ideia de campanha realizada na Itália em fevereiro de 2020, de iniciativa de uma associação de bares e restaurantes de Milão, a qual defendia a ideia de que “#milanononsiferma” (“Milão não fecha”) e incentivava os habitantes da cidade a manter seus hábitos e a não alterar sua rotina. Milão se encontra localizada na região da Lombardia que, na ocasião, contava 250 pessoas infectadas pelo vírus, com 12 mortes, em uma população de 9,7 milhões de habitantes. Atualmente (dados de 31 mar 2020, 15h07), a Itália tem 105.792 casos da doença confirmados e 12.428 mortes, sendo a região de Milão a que conta com os maiores números em relação a qualquer outro ponto da Itália. Não há nenhuma evidência científica a mostrar que o Brasil será menos afetado pela expansão do novo coronavírus do que a Itália”, adverte a ação do MPF, lembrando ainda que até 5 de abril, mais de 1,2 milhão de pessoas ao redor do mundo já foram infectadas, com quase 65 mil mortes.
Medicina é ciência - “O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu que o direito à saúde compreende a prática de medicina baseada em evidências. Medicina é ciência, não é achismo, não é conversa de boteco. Isso também se desenvolve na perspectiva da precaução. Para evitar que as pessoas se exponham a risco e também para que elas não adotem comportamentos que não são indicados por critérios técnicos, não pode a União, por meio da Presidência da República, desconsiderar a medicina baseada em evidências em suas manifestações oficiais e incentivar condutas desvairadas que contrariam as recomendações aceitas pela ciência”, diz a ação judicial.
Além da legislação que rege a administração pública durante o enfrentamento da pandemia, o comportamento do presidente também viola o princípio constitucional da precaução, que se aplica ao direito à saúde pública. “Na dúvida, não se deve expor a risco a saúde das pessoas, ou seja, não deve o agente público, e no caso concreto o presidente da República, por meio de suas manifestações em redes sociais e diversos canais de comunicação, expor toda a sociedade a risco, recomendando a retomada das atividades cotidianas, a reabertura dos comércios etc, diante da pandemia da covid-19”, diz a ação do MPF.
A própria lei que decretou emergência de saúde estabelece que quaisquer medidas tomadas enquanto durar a pandemia não podem ser definidas sem parâmetros técnicos e científicos, mas os pronunciamentos da Presidência da República até o momento ignoram essa obrigação. Um exemplo disso é o fato de que a rede social twitter apagou duas postagens feitas no perfil do presidente por veicularem informações sem base científica sobre o novo coronavírus, violando as regras da plataforma, da mesma forma que violam o ordenamento jurídico nacional.
Para o MPF, “o uso de redes por agentes públicos, sobretudo os chefes do Poder Executivo, a partir do momento que tem o objetivo de prestar informações sobre o mandato e interação com os cidadãos e cidadãs, possuem um caráter oficial. Assim sendo, as redes sociais utilizadas pelo presidente da República, ministros e outros agentes não devem ser consideradas meras contas pessoais, mas veículos oficiais de manifestação”. Por esse motivo, a Justiça pode intervir e determinar que a conta presidencial obedeça a legislação do país.
Danos no Pará - Em pelo menos 16 municípios paraenses, a postura contraditória do governo federal vem causando “efeitos perversos”. A pressão do presidente pela reabertura de serviços e estabelecimentos não essenciais foi seguida por prefeitos no estado. Em outros municípios, carreatas pedindo o fim das medidas contra a pandemia tiveram que ser reprimidas pela polícia.
“O episódio mais emblemático de toda a celeuma gerada em torno da necessidade de isolamento social e do incentivo dado pelas informações contraditórias prestadas pela União, através da presidência da República, foi a divulgação nas redes sociais, no dia 30/03/2020, de um vídeo de ameaças realizadas pelo Deputado Federal Éder Mauro ao Delegado-Geral de Polícia do Estado do Pará, o que demonstra o clima de incerteza e insegurança gerado pela ausência de informações uníssonas da União”, lembra a ação do MPF.
Genocídio indígena - A ação do MPF lembra do alto risco de genocídio indígena, ao tratar dos danos trazidos à população do Pará pelos discursos presidenciais. A primeira morte registrada no Estado pela pandemia de covid-19 foi de uma mulher indígena da etnia Borari, “o que acende ainda mais o alerta para o fato de que a pandemia poderá dizimar populações nativas inteiras no nosso estado”.
Fonte: Site do Ministério Público Federal