"Igrejas e templos religiosos nunca estiveram fechados. O decreto veio apenas formalizar isso, visto que gerava dúvidas. A Procuradoria Geral do Município (PGM) do Río de Janeiro está recorrendo da decisão." A nota da Prefeitura do Rio encerra um paradoxo, ao anunciar um recurso para reabrir templos que nega terem estado de portas cerradas. O recurso contesta a decisão da 7ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que suspendeu os efeitos do Decreto Municipal nº 47.461/2020, do Município do Rio de Janeiro.
O decreto autorizava o funcionamento de templos religiosos de qualquer natureza para realização de cultos. Ao anunciar na segunda-feira, 25/5, a publicação do decreto agora suspenso, o prefeito admitia conflitos entre líderes religiosos, guardas municipais e policiais militares, em torno dos limites de funcionamento dos templos.
Na decisão, o juiz Bruno Bodart determinou que a prefeitura fiscalize de forma efetiva o cumprimento das medidas de isolamento social, notadamente quanto ao funcionamento de cultos religiosos presenciais.O despacho fixa um prazo de 10 dias para a Prefeitura do Rio apresentar análise de impacto regulatório, nos parâmetros estabelecidos nos manuais da Casa Civil da Presidência da República e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sobre as medidas adotadas em âmbito municipal para enfrentamento da Covid-19. O magistrado estabeleceu multa no valor de R$ 50 mil, em nome do prefeito Marcelo Crivella, no caso de descumprimento de qualquer uma das medidas determinadas.
A decisão acolheu os pedidos formulados em duas ações civis públicas ajuizadas pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Estado contra as medidas adotadas pelo Município do Rio para o combate à Covid-19. Para o juiz, a decisão de liberar a realização de cultos presenciais não se baseou em nenhuma análise sobre o impacto que poderia provocar, colocando em risco a população.
"A Administração Pública municipal não realizou sequer a mais básica análise de impacto regulatório para motivar a sua decisão de autorizar aglomerações de pessoas em cultos religiosos. Parece fantasioso que o benefício gerado aos fiéis pelo exercício in loco das suas práticas religiosas compense o altíssimo risco de contágio inerente a essas reuniões, ainda que adotadas as medidas mitigatórias previstas no Decreto ora impugnado", destacou o magistrado na decisão.
Bruno Bodart considerou que o risco de contaminação pelos frequentadores dos cultos religiosos poderia, até mesmo, se expandir para outras pessoas.
"A atividade religiosa presencial gera inegáveis externalidades negativas: a propagação acelerada do vírus nas cerimônias religiosas certamente expandir-se-á para atingir não fiéis, afetando a saúde e a vida de terceiros."
A decisão do juiz Bodart atende a pleito da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), que movera ação na justiça para pedir a anulação do Decreto n° 47.461, assinado na última segunda-feira (25/5) pelo prefeito Marcelo Crivella, que autoriza o retorno das atividades de templos religiosos de qualquer natureza. O documento pede que o município seja intimado a esclarecer, em até 48h, as diretrizes técnicas e científicas que apontam a ausência de risco aos cidadãos com a medida.
O Boletim Epidemiológico 11 do Ministério da Saúde, do dia 17 de abril, aponta que os municípios que se encontram na classificação de risco muito alto, como é o caso do Rio de Janeiro, devem ser proibidas todas as atividades que envolvam aglomeração. Ademais, as projeções apontam para um aumento de casos nos próximos dias, o que perdurará em caso de relativização das medidas de isolamento social.
O retorno das atividades de templos religiosos foi permitido desde que observadas medidas de prevenção de contágio como o uso de máscaras, álcool 70% em gel e distanciamento mínimo de dois metros entre os fiéis. Entretanto, o município não embasou o ato em nenhum estudo técnico, violando assim a determinação da 7ª Vara de Fazenda Pública, que proíbe ato administrativo que contrarie as medidas de isolamento social sem a apresentação de laudo.
A Defensoria Pública se baseia no monitoramento de casos feito pelo Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) que apontam que não houve alteração nas circunstâncias enfrentadas em razão do coronavírus. Segundo os dados, a taxa de letalidade e de óbitos alcançou seu ápice menos de uma semana antes do novo decreto. A decisão de garantir a realização de cultos em templos religiosos também contraria as orientações do comitê científico convocado pela própria prefeitura, que mencionou ao prefeito as aglomerações causadas pelas reuniões como um exemplo de alto potencial de contágio.
Bispos, rabinos, babalaôs e pastores não levaram fé na recomendação do prefeito Crivella
A decisão da Prefeitura não encontrou respaldo unânime entre os líderes religiosos, em tese os principais beneficiários. A Arquidiocese do Rio, depois de consulta a paróquias, optou por manter cultos on line. O cardeal arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, invocou razões de saúde pública para a recomendação, dirigida às 280 igrejas e mil capelas, que seguem fechadas.
"Quando surgiu essa questão, todos foram unânimes em dizer que na sua região ainda tem muita gente infectada, morrendo e muitas famílias com problemas. Não seria o momento agora de retornar as missas presenciais. Estamos preparando nossos templos com higienização para quando diminuir essa incidência, nós podermos voltar as celebrações", afirmou Dom Orani João Tempesta, cardeal arcebispo do Rio, em depoimento à TV Globo.
Orientação semelhante foi adotada pela Igreja Batista Betânia, na qual o pastor Neil Barreto conta quatro vítimas da Covid-19.
"É um decreto que nós não acataremos. Embora sejamos religiosos, comunidade de fé, eu acredito que a fé não dispensa bom senso. Manteremos as nossas atividades online até que a ciência nos diga que nós temos segurança para fazer isso. Acho que a preservação da vida hoje é mais importante", destacou o pastor, em conversa com o repórter Andre Trigueiros.
Tradição judaica em casos de risco de vida faz com que as sinagogas e centros de estudo do judaísmo sigam fechados, conforme explica o rabino Nilton Bonder, autor de livros e peças de sucesso inclusive entre adeptos de outras religiões, como 'A Alma Imoral'.
"A nossa conduta nesse momento tem sido exatamente permanecermos de forma virtual. Migramos totalmente, todos os serviços religiosos são feitos de forma virtual, e assim nós vamos permanecer, até porque a tradição judaica, a questão do risco de vida, permite que a gente, obviamente, modifique tudo que seja necessário para você evitar o risco à vida humana", declarou o rabino.
A concentração dos adeptos nas periferias e favelas, de maior vulnerabilidade à Covid-19, impõe cautela especial aos terreiros de candomblé e outras religiões de matriz africana. O babalaô Ivanir dos Santos afirmou que eles vão continuar a seguir as recomendações da ciência médica.
"O decreto é uma insensibilidade com a vida humana e [está] muito mais preocupado com a vida econômica da cidade. Também estamos preocupados, mas as maiores vítimas têm sido as comunidades pobres, marginalizas, periferias, onde estão os nossos adeptos, são a grande maioria. Nós não concordamos por essa razão", disse o babalaô, que foi premiado pelos Estados Unidos pelo trabalho à frente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.