Relatórios de vistorias realizadas pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) em Unidades de Atendimento Socioeducativo do estado revelam melhorias significativas nas condições de internação de jovens, nos meses seguintes à liminar do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal. A decisão, dada em maio do ano passado no bojo do habeas corpus coletivo 143.988, determinava a colocação em meio aberto ou a transferência para internação domiciliar de adolescentes sobressalentes em unidades com ocupação superior à taxa média de 119% nos estados do Ceará, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Os relatórios foram enviados ao STF junto com o levantamento da DPRJ, de agosto de 2019, que mostra que 96% dos jovens beneficiados pela medida na capital não foram apreendidos novamente. Esse percentual chegou a 100% em Belford Roxo; 96% em Campos e 93% e Volta Redonda.
Foram incluídos ainda dados oficiais do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP), que mostram que houve queda de quase 20% nos autos de apreensão de adolescentes por prática de ato infracional no estado em junho de 2019, com relação ao mesmo mês de 2018.
- Os efeitos da medida liminar deferida pelo Ministro Fachin demonstraram que não houve qualquer agravamento dos índices de segurança pública, muito menos com nexo de causalidade que se possa imputar à decisão. Assim, as supostas consequências negativas da decisão não se concretizaram - disse a defensora Angélica Rodrigues, subcoordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) em matéria socioeducativa.
Na Escola João Luiz Alves, na Ilha do Governador, por exemplo, a vistoria da DPRJ, em setembro do ano passado, constatou uma redução de 311 jovens, na data da liminar, para 183 - uma diminuição de 41% do total de internos. Com menos adolescentes no local, foi possível perceber uma considerável melhora no fornecimento de alimentos, de objetos de vestuário e de higiene pessoal. Segundo o então diretor da unidade Uranis David de Assumpção, após a redução do quadro de superlotação, tornou-se possível realizar a higienização da unidade com maior frequência e melhor qualidade: “A equipe de limpeza consegue fazer uma higienização da unidade. É totalmente diferente limpar para 100 e limpar para 300 internos”.
O relatório mostra ainda o depoimento do agente socioeducativo Luiz Cezar de Abreu Junior, que relatou melhorias na saúde dos adolescentes, sobretudo no que se refere a doenças de pele: “Os adolescentes agora respeitam mais os funcionários e estão mais tranquilos e menos doentes”. Também foi possível evidenciar, durante a vistoria, melhora no que se refere à prestação de alimentação em favor dos internos, que passaram a se alimentar no refeitório. Há quatro anos isso não ocorria. Antes, não havia espaço para que todos fizessem as refeições no local, tampouco quantidade suficiente de agentes socioeducativos para auxiliar no deslocamento dos alojamentos até lá.
Outra mudança importante constatada pela vistoria foi a redistribuição dos internos. De 15 jovens em cada alojamento passou para três, o que possibilitou que todos pudessem dormir em camas. O jovem L.R.N.N. contou aos defensores que antes faltavam colchões e que já dormiu no chão apenas em cima de um lençol.
- Essa situação sempre foi insustentável. A própria legislação já prevê expressamente que, não havendo vagas, o adolescente deve ser inserido em programa de meio aberto (artigo 49, II da Lei 12594). A decisão do Ministro Fachin faz cumprir a lei, humanizando um sistema que se apresentava falido - afirmou o defensor Rodrigo Azambuja, coordenador da Infância e da Juventude da DPRJ.
No Centro de Socioeducação Professora Marlene Henrique Alves, em Campos, a Defensoria constatou melhoria no fornecimento de água para os adolescentes. Na inspeção, apurou-se que, com a superlotação, era necessário fazer um racionamento da água, controlando o tempo de banho e, por vezes, até impedindo a sua realização. Após a liminar, o problema da falta de água foi atenuado.
A pedagoga da unidade, Larissa Lessa de Souza Cabral, relatou, durante a vistoria, que se tornou possível até realizar dinâmicas entre os adolescentes e seus familiares, integrando a família no processo de socioeducação, como preconiza o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). "Antes da liminar, não conseguia fazer um atendimento personalizado e em determinadas atividades, por causa da quantidade de adolescentes. Tinha que atender um número maior de jovens, e, com isso, não tinha tempo para pegar um grande número de informações. Atualmente, consigo fazer encontro com as mães dos adolescentes e dinâmicas com os mesmos”.
Sob a vertente da educação, constatou-se que a liminar proferida pelo Ministro Fachin promoveu mudanças expressivas nessa área, abarcando desde o aumento da performance acadêmica dos estudantes até uma maior facilidade em desenvolver um acompanhamento individual para cada jovem, de acordo com as suas limitações pessoais. Segundo os depoimentos colhidos, a elevada quantidade de jovens na unidade levava a distrações nas salas de aula, criando consideráveis obstáculos para o aprendizado dos adolescentes.
- A subsistência de unidades – que se pretendem socioeducativas – superlotadas, insalubres e em condições sanitárias sub-humanas representa um resquício da prática social adultocêntrica anterior à vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, assemelhando tais estabelecimentos a prisões, muito embora devessem se equivaler a escolas. Assim, a decisão resgatou a finalidade pedagógica das medidas socioeducativas, proporcionando a proteção estatal a todos os adolescentes, independentemente da prática ou não de ato infracional – disse a defensora Beatriz Cunha, subcoordenadora da Infância e Juventude da Defensoria Pública.
Nota pública
Uma nota pública de apoio ao habeas corpus 143.988 foi publicada por 150 instituições, entre elas a Defensoria Pública do Rio (DPRJ). O documento pede a adoção de quatro medidas fundamentais: limitação da taxa de ocupação dos adolescentes internados em unidades socioeducativas em 119% da sua capacidade; transferência dos adolescentes sobressalentes para outras unidades que não estejam com capacidade de ocupação superior a 119%;em caso de a transferência não ser possível, inclusão dos jovens em programa em meio aberto, exceto nos casos de adolescentes que cometeram ato infracional mediante violência ou grave ameaça; até que seja atingido o percentual máximo de ocupação; e, por fim, diante de impossibilidade de adoção das medidas anteriores, conversão da medida de internação em internação domiciliar.
Veja aqui as íntegras dos relatórios e do estudo:
https://bit.ly/2E4k9CY e https://bit.ly/340i9q2 e https://bit.ly/3auS5oo
Ouça, abaixo, o áudio da Beatriz Cunha, subcoordenadora da infância e juventude da Defensoria Pública do Rio.