O favorecimento do poder público tem sido decisivo para a expansão das milícias no Rio de Janeiro. Os grupos paramilitares se beneficiam da omissão dos órgãos de fiscalização para incrementarem suas atividades no setor imobiliário, seja no mercado formal ou por meio de construções irregulares. A expansão dos serviços sob influência desses bandos, como o 'gatonet' e o monopólio da venda de botijões de gás, se beneficia também da baixa ocorrência de operações policiais nos territórios sob seu controle. Essas são as principais conclusões do relatório A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados, lançado na sexta-feira (30).
O levantamento é do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e do Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ). Os dados reforçam a tese de que as milícias contam com uma dupla vantagem (política e econômica) em relação às chamadas facções do tráfico, como Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigo dos Amigos. Ouça a pesquisadora Carolina Grillo, do GENI/UFF, explicar a pesquisa no podcast do Eu, Rio! (eurio.com.br)
“Há consistentes indícios de favorecimento das milícias no que se refere às operações policiais, instrumento maior das políticas de segurança pública, de competência do Governo do Estado. Em relação às políticas de licenciamento, legalização e construção imobiliárias, de competência predominante da administração municipal, verifica-se uma coerção violenta sobre os processos de fiscalização, o que torna viável o parcelamento ou a construção ao arrepio da lei, contando-se depois com a possibilidade de legalização, viabilizada por legislações “facilitadoras” em nível municipal, como as leis de mais valia”, aponta o estudo.
Os ganhos com o mercado imobiliário são apontados como uma das principais – senão a principal – fonte de renda da organização. Para os pesquisadores, o crescimento também está intimamente relacionado ao processo de expansão da fronteira urbano-imobiliária na zona oeste da cidade e municípios da região metropolitana, onde se sabe que a formação de novos loteamentos é frequentemente coordenada por esse grupo.
O relatório é preliminar, restrito à cidade do Rio de Janeiro, e toma como referência o período de 2007 a 2020, justamente o de maior fortalecimento das milícias e de alcance dos dados levantados, baseados em três fontes distintas: o mapa dos grupos armados, a base de operações policiais do GENI/UFF e a base da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) no que tange aos licenciamentos e legalizações de edificações novas.
Os dados ainda serão complementados por análises quantitativas mais finas dos impactos das operações policiais sobre os territórios e da fiscalização de irregularidades urbanas, pelo levantamento de investimentos públicos em infraestrutura em áreas sob o controle de grupos armados e pelo trabalho de campo qualitativo, já em andamento, em áreas sob o domínio de milícias. “No entanto, os resultados preliminares da pesquisa já oferecem razões suficientes para que as relações entre o poder público e as milícias ocupem um lugar de destaque no debate que antecede as eleições municipais que se aproximam”, pontuam os autores.
Coordenada pelos pesquisadores Daniel Hirata; Adauto Lúcio Cardoso; Orlando Alves Santos Júnior; Carolina Grillo e Renato Coelho Dirk, o relatório mostra que as milícias atuam em territórios cada vez mais extensos, onde o controle é exercido de forma ilegal, por meio da cobrança de taxas extorsivas sobre os mercados de serviços essenciais como água, luz, gás, TV a cabo, transporte e segurança, além do mercado imobiliário. Tais controles são exercidos de maneira arbitrária, através da coerção pelo uso da força bruta.
Em comparação com os outros grupos armados do Rio de Janeiro, as milícias estariam presentes em territórios onde o enfrentamento armado com as forças estatais foi bastante reduzido e a atividade imobiliária foi mais intensa. A baixa quantidade de operações policiais em bairros dominados por milicianos contrasta com uma alta frequência de operações em bairros onde é conhecida a presença de facções do tráfico.
O relatório foi lançado oficialmente às 14h desta sexta-feira (30/10), no encerramento do 1º Seminário da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança e Direitos - Milícias, grupos armados e disputas territoriais no Rio de Janeiro. O evento teve transmissão ao vivo pelo youtube. A mesa “O Fenômeno das Milícias no Rio e em outros estados brasileiros” teve a participação dos jornalistas Rafael Soares e Bruno Paes Manso, além dos pesquisadores Aiala Colares Couto e Carolina Grillo, com comentários de Paulo Baía, Pablo Nunes e Paula Poncioni.
O evento virtual também marcou o lançamento do livro A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso. O livro se constrói a partir de depoimentos de protagonistas dessa complexa estrutura do crime, expondo, com riqueza de detalhes, as ligações entre policiais, o tráfico, o jogo do bicho e o poder público. Dos esquadrões da morte formados nos anos 1960 ao domínio do tráfico nos anos 1980 e 1990, dos porões da ditadura militar às máfias de caça-níquel, da ascensão do modelo de negócios miliciano ao assassinato de Marielle Franco, o livro joga luz sobre uma face sombria da experiência nacional que passou ao centro do palco com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência em 2018.
A Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos é formada por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Cândido Mendes (Ucam), PUC-RIO, FGV-RJ, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), ISER, Observatório de Favelas, Redes da Maré, Fogo Cruzado, Instituto Igarapé, Anistia Internacional, Fórum Grita Baixada, Casa Fluminense, ITS, Cejil, Luta Pela Paz, Justiça Global, Instituto Pereira Passos (IPP), centros de pesquisas de entidades jurídicas — como Ministério Público do Rio de Janeiro, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) —, além de jornalistas de diferentes meios de comunicação.
Fonte: Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos