O Dia da Luta Antimanicomial é celebrado hoje, terça-feira (18). A data marca a busca pela humanização do tratamento ofertado aos usuários da rede de saúde mental. Nos últimos 26 anos, o Município do Rio de Janeiro libertou dos manicômios mais de quatro mil pessoas, que tiveram a cidadania resgatada voltando a viver com suas famílias ou em uma das 92 residências terapêuticas mantidas pela Prefeitura. Seus tratamentos seguem em um dos 35 centros de atenção psicossocial (CAPS) da cidade, que substituem as grades por terapias baseadas muitas vezes em arte, mas sempre com respeito e empatia.
Hoje, há 504 moradores em residências terapêuticas da cidade, projeto iniciado entre 1998 e 2000, e aproximadamente 19 mil usuários em CAPS. Há ainda 127 pacientes internados em longa permanência em hospitais psiquiátricos municipais, que recebem projetos terapêuticos individuais, visando, assim que possível, a desospitalização. Em 1995, eram 4.500 pacientes internados em instituições do município como os institutos Juliano Moreira, em Jacarepaguá, e Nise da Silveira, no Engenho de Dentro.
“Esta é uma data de celebração da possibilidade de vida fora do hospício para pessoas que foram privadas de liberdade por muitos anos, e finalmente saem dessas amarras”, esclarece a assessora chefe da Superintendência de Saúde Mental, a psicóloga Patrícia Matos. Ela afirma que, dos 127 pacientes ainda institucionalizados, muitos estão em vias de retornar à vida em comunidade, o que se tornou ainda mais viável a partir de 2002, com a aprovação do Bolsa Rio, apoio financeiro para pessoas que viveram em instituições psiquiátricas de longa permanência. Hoje, 363 são beneficiadas pelo auxílio.
“Como muitos desses pacientes não têm família ou nenhuma possibilidade de retorno familiar, a residência terapêutica é um recurso para que eles saiam dos hospitais, vivendo em comunidade com suporte de profissionais. Trabalhamos prioritariamente pelo resgate dos laços familiares, para a construção da cidadania e o ganho da autonomia, mas fundamentalmente para a vida em liberdade, seja em residência terapêutica ou mesmo vivendo sozinhos”, explica.
A especialista conta que as experiências de forma geral são muito positivas e que a humanização foi iniciada ainda dentro das instituições, com cuidados cotidianos dos pacientes: “A reforma psiquiátrica está nas relações, no modo como praticamos o cuidado dentro e fora do hospício. Quanto mais tempo institucionalizadas, mais profundos os efeitos nas pessoas”.
A arte como caminho para a liberdade
A psiquiatra, psicanalista e cineasta Raquel Fernandes é diretora desde 2013 do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, em Jacarepaguá, na antiga Colônia Juliano Moreira, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. A profissional aborda como a arte contribuiu e ainda contribui para a emancipação dos pacientes, muitos deles artistas que têm suas obras expostas na mostra “Arte Ponto Vital”.
"A arte entra para furar a bolha de silenciamento. A exposição teve a curadoria de pacientes porque achamos importante que a história fosse contada por eles, através da perspectiva deles”, comenta.
A mostra começa com o início da história da instituição, em 1924, quando a colônia era ambiente de trabalho dos pacientes, em sua maioria pessoas negras e vulneráveis ao adoecimento e à inadequação social. Eram essencialmente pacientes crônicos, com pouca possibilidade de sair do tratamento imposto. A proposta de tratamento revolucionário rapidamente se tornou um “depósito de gente”, como alguns relatam.
No final dos anos 40, os ateliês começam a ganhar espaço na saúde mental, com médicos estimulando os poucos pacientes que demonstravam habilidade para pintura. Nos anos 80, artistas começaram a compartilhar suas experiências e desenvolver trabalhos artísticos com pacientes. Em 18 de maio de 1980, uma reportagem denuncia na TV a realidade caótica de exclusão e isolamento na colônia. Pela primeira vez, Arthur Bispo do Rosário é personagem na mídia.
O artista plástico, paciente da instituição, teve sua genialidade reconhecida internacionalmente anos depois. Em 1982, acontece no Museu de Arte Moderna a primeira e única mostra autorizada por Bispo, que não permite mais a exibição de suas peças, com quem tinha uma conexão profunda. Só em 1989, com a sua morte, reinicia-se a exposição de suas obras.
Na década de 90, as internações param de ser realizadas na instituição, mantendo somente os pacientes já hospitalizados nela. Onde já estiveram 5 mil pessoas internadas ao mesmo tempo, no final dos anos 70, hoje há pouco mais que uma centena. Foi desenvolvida a residência artística, em que artistas contemporâneos produzem junto aos pacientes, como Fernanda Magalhães, que trabalhou junto de mulheres internadas questões relacionadas à autoestima, por exemplo.
Entre as produções artísticas, esculturas, fotografias, vídeos, pinturas e até um espetáculo teatral de dança e música clássica. O museu tem ainda restaurante e loja, que comercializam produções dos artistas locais. E há também o Polo Experimental, em que são oferecidas oficinas de bordado, costura, horta, projetos de moda, rádio e até um bloco de Carnaval.
Artistas descobertos no ateliê da colônia fecharam parcerias com marcas, que vão usar suas artes em estampas, por exemplo. São desenvolvidos projetos de geração de renda, criando redes de contatos que permitem que cada um possa se reinserir na sociedade de alguma forma. Como fala Raquel, o museu é não somente arte, mas também memória:
"É uma descoberta de novas possibilidades para o cuidado e de como a arte pode ser um elemento transformador. É preciso acreditar que essas pessoas têm direito a não morrer aqui. Queremos fazer um trabalho para que agora ocupem a cidade. A desinstitucionalização é um desafio, mas a partir da arte podem se encontrar e encontrar seu espaço na vida. Tentamos fazer com que cada um, dentro daquilo que consegue, faça parte do todo, o que gera autoestima. O 18 de maio reforça a necessidade de que a diferença possa coexistir", declara.
Reconhecimento é motivação
Arlindo trabalha em esculturas de madeira que coleta nas ruas, mas também em outras formas de arte. Ele lembra que vive há 55 anos na colônia, onde dividiu a cela com Bispo do Rosário. Hoje, sua alegria é a dedicação à arte: "Não largo o serviço enquanto não acabar. Vim pra cá adolescente. As crianças ficam doidas quando veem. Quando vou à exposição, adoro. Distrai a mente da pessoa”.
Com o nome artístico Patrícia Ruth, a artista Ruth de Souza teve sua obra exposta na Casa França-Brasil. “Eu fiquei toda importante, ficou muito bonito, e eu toda chique”, recorda, mostrando orgulhosa as imagens do dia em que foi à exposição na Casa.
Por seis meses, Rogéria Barbosa vinha de Sepetiba para participar das oficinas, antes de se mudar para um bairro mais próximo da colônia. Ela, que já tinha uma trajetória artística, descobriu a oportunidade pela internet, em uma live do museu. Foi uma das artistas que participou da curadoria da mostra e terá uma de suas artes estampadas por confecção.
"Arte é equilíbrio. Eu me equilibro através da minha arte, das minhas telas. É um encontro com nós mesmos. Eu me transformo. Conto minha história através da pintura. E estou escrevendo minha biografia”, relata a artista, que é exemplo do trabalho de descoberta de talentos atendidos nos CAPS.
Programação para marcar a data
Como parte da programação do Mês da Luta Antimanicomial, o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea realizará hoje (18), às 19h30, o lançamento do programa "Stella do Patrocínio: A História que Fala". O programa foi idealizado por Diane Lima, curadora convidada pela instituição para desenvolver pesquisa curatorial em torno dos áudios de Stella do Patrocínio, poeta que também foi institucionalizada.
O Instituto Municipal Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, também tem roteiro especial voltado para a celebração do mês. Nesta terça-feira, 18, acontece o lançamento da exposição “A liberdade é terapêutica”, de Marcelo Valle e Pâmela Perez, na Alerj. A iniciativa é do instituto e da Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e da Luta Antimanicomial e a exposição pode ser vista também em versão virtual, pelo link: https://retratosdasaudemental.46graus.com/apresentacao/.
Na mesma data, é lançado o Ciclo de Debates “Endereços na cidade: é o fim do manicômio”, na página do Facebook da instituição (imnisedasilveira).
O calendário segue até dia 29 de maio com exposições, aulas e rodas de conversa, entre outras atrações:
18/05 às 10h - Rádio Cafuné, programa com a participação do Loucura Suburbana - www.radiocafune.com.br
20/05 às 14h30 - Live “Arte contra o Manicômio" - Youtube Museu Bispo do Rosário
17h30 - Café com loucura - Facebook loucura.suburbana
21/05 às 14h - Trilhando na rede - encontro com o Centro de Convivência Trilhos do Engenho - Facebook trilhosodoengenho
22/05 às 19h30 - Entrenós - apresentação do Loucura Suburbana - Youtube EntreMundos de Teatro
24/05 às 19h - Aula musical - Loucura Suburbana no curso Saúde Mental e Atenção Psicossocial - Unisuam
25/05 às 9h - Aula musical - Loucura Suburbana no curso Saúde Mental e Atenção Psicossocial - Unisuam
26/05 às 15h - Ciclo de Debates Infância livre: o fim das internações infanto-juvenis no Engenho de Dentro - Facebook imnisedasilveira
19h - Roda de conversa - Participação do Loucura Suburbana no Ciclo Arte e Saúde Mental - Canal Cultura UFMG
27/05 às 19h - Live Encantarte - Lançamento do livro “Como aprendi a lidar com a depressão”, de Clayton de Souza - Facebook loucura.suburbana
28/05 às 14h - Exposição virtual Retratos de ConvivenciAR - Facebook imnisedasilveira
29/05 às 16h - Café com loucura - exibição do filme Bonecos do Germano de Victor Magrath - Facebook loucura.suburbana
Para visitar a exposição “Arte Ponto Vital”, do Museu Bispo do Rosário, é possível realizar agendamento ou fazer um tour virtual pelo site www.museubispodorosario.com.