Uma situação natural, uma questão privada e um crime de menor potencial ofensivo. Era assim que a violência doméstica, mesmo nos casos de agressão física ou homicídio, era vista. Não faz muito tempo que essa história começou a mudar, dizem especialistas ouvidas pela Agência Brasil. Mas não há dúvidas sobre o significado dessa conquista. A Lei Maria da Penha completa hoje (7) 15 anos.
A promotora Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo (MPSP), diz que a lei “inaugurou um novo tempo para as mulheres”, não somente com uma “uma mudança de olhar, mas com um sistema de proteção integral”. “A lei não prevê punição apenas”, ressalta.
A lei, considerada uma das três melhores no mundo pelas Nações Unidas, prevê mecanismos inovadores, como medidas protetivas, ações de prevenção, suporte às mulheres e grupos reflexivos para homens.
Para Sônia Coelho, da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e integrante da Marcha Mundial de Mulheres, a Lei Maria da Penha desnaturalizou a violência doméstica. “É um crime e as bases dessa violência estão justamente nas desigualdades que homens e mulheres vivem na sociedade”, aponta. “A lei muda radicalmente o cenário que havia antes dela. De fato, desloca o problema da violência doméstica do campo da banalização”, concorda Alessandra Teixeira, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC).
A Lei Maria da Penha definiu cinco formas de violência: física, sexual, moral, psicológica e patrimonial. “Até então, a violência contra a mulher era identificada apenas com o olho roxo”, relembra Valéria. Em 2015, nova conquista com a tipificação do crime de feminicídio e, neste mês, a criação do tipo penal violência psicológica. “Essas violências estão sempre acontecendo concomitantemente e, muitas vezes, acaba em feminicídio”, diz Sônia.
“É muito difícil de responder isso, até porque teríamos que ter, no passado, números mais confiáveis. Sempre tivemos altíssima subnotificação. Claro que o fenômeno da violência está aí, ele não vai acabar de uma hora pra outra”, avalia Alessandra. A professora acredita que a violência contra a mulher sofre cada vez mais “rachaduras” e força instituições a se posicionarem. “Há uma não conformidade daquela máxima que era muito repetida: em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.”
“Muitas vezes as pessoas perguntam por que a cada ano os índices de violência contra a mulher aumentam? Há sim o aumento dos índices de violência, mas há também o aumento da conscientização. Muitos homens já eram violentos e agora as mulheres estão rompendo o silêncio”, aponta a promotora paulista.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que o assassinato de mulheres registrados como feminicídio passou de 929, em 2016, para 1.350, em 2020. Além disso, quase 15% dos homicídios de mulheres no ano passado praticados por parceiros ou ex-parceiros das vítimas não foram registrados como feminicídio.
A integrante da SOF destaca que, como uma lei integral, a sua execução requer investimentos em áreas de prevenção e proteção. “Se a gente quer superar a violência, não basta punir, principalmente em um país como este que a gente nem precisa falar no que é o modelo carcerário”, avalia.
Alessandra reforça que políticas sociais, de forma geral, podem ter impacto no fortalecimento das mulheres. “Uma política, por exemplo, de transferência de renda, como o Bolsa Família, tem um impacto direto na questão da violência contra a mulher. Nem precisa fazer grandes exercícios pra entender: ela diz respeito à autonomia financeira, diz respeito ao cumprimento dos direitos sociais dos filhos.”
A Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) disse, em nota, que “está evoluindo tanto no aspecto da recomposição orçamentária, quanto na execução”. De acordo com a secretaria, o orçamento em 2019 era em torno de R$ 30 milhões. “Em 2020, recebemos um incremento oriundo de emendas excepcionais, que nos permitiu chegar a R$ 126 milhões”, destacou. Em 2021, o orçamento é de R$ 60 milhões.
Ainda segundo a secretaria, a execução, em 2020, chegou a 98% do total. Em 2019, esse percentual ficou em 96%, em 2018, em 84%, e em 2017, em 55%.
“Destaca-se que nos últimos três anos a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres tem investido os recursos do orçamento de forma prioritária em: novas unidades da Casa da Mulher Brasileira, qualificação profissional, equipagem de patrulhas e rondas Maria da Penha e implantação de Núcleos Integrados de Atendimento à Mulher”, ressaltou a secretaria.
De acordo com a secretaria, existem atualmente sete unidades da Casa da Mulher Brasileira, localizadas em Brasília, São Luís, Boa Vista, Fortaleza, Curitiba, Campo Grande e São Paulo. Há recursos empenhados do Orçamento para a implementação de 23 novas unidades, além de três novos Núcleos Integrados de Atendimento à Mulher em delegacias em fase de instalação.
Uma das iniciativas recentes do ministério foi tornar lei a utilização de um “X” vermelho na palma da mão como forma de denúncia contra um agressor. “Em dois anos e meio, sancionamos diversas leis de proteção ao segmento feminino. Em breve nós também vamos contar com o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio (PNEF)”, disse a ministra Damares Alves, na cerimônia de sanção da lei.
Vítimas de violência doméstica podem apresentar um sinal vermelho na mão para alertar que estão vivendo uma situação de vulnerabilidade - Paulo H. Carvalho/Agência Brasília
Damares também destacou a inclusão, em abril, de atos de perseguição como crime no Código Penal. A norma também incluiu como agravantes a violência contra mulheres, crianças, idosos e adolescentes, com uso de arma de fogo ou quando cometido por mais de uma pessoa. A ministra lembrou ainda do formulário unificado de enfrentamento à violência contra a mulher e da inclusão da prevenção à violência contra a mulher no currículo da Educação Básica.
A Lei Maria da Penha estabelece a criação de estruturas especializadas no atendimento às mulheres, como delegacias e varas de Justiça. “A Lei Maria da Penha prevê um atendimento humanizado, ininterrupto da mulher, por exemplo, na delegacia de polícia, na perícia, num ambiente reservado, especialmente projetado para essa mulher, em que ela não tenha contato com o agressor, tendo a sua intimidade preservada”, explica Valéria, destacando que o objetivo é evitar a revitimização.
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam a existência de 138 varas exclusivas de violência doméstica em 2020, uma a menos do que em 2019, quando eram 139. Em 2016, eram 109 varas. No ano passado, a Justiça tinha mais de 1,1 milhão de casos pendentes de violência doméstica em fase de conhecimento. Esse número era cerca de 880 mil em 2016. Além disso, foram 554 mil novos casos no ano passado.
Para a promotora, “é possível fazer justiça mesmo nos locais onde não existe estrutura para isso”. “Desde que aquela pessoa presente tenha esse olhar de gênero, tenha a compreensão de que aquela mulher vítima de violência não escolheu estar na relação violenta, ela não consegue mais reagir”, destaca. Ela reconhece, no entanto, que “o machismo estrutural e estruturante [está] em todos os setores da sociedade, inclusive perante aquelas autoridades que aplicam a lei”.
O governo federal mantém a Central de Atendimento à Mulher para recebimento de denúncias e encaminhamentos de casos de violência contra a mulher. O número é 180. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.
O serviço também fornece informações sobre os direitos da mulher, como os locais de atendimento mais próximos e apropriados para cada caso: Casa da Mulher Brasileira, Centros de Referências, Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), Defensorias Públicas, Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros.