O noticiário sobre a descoberta, pela Polícia Federal, de um esquema criminoso de pirâmide no município de Cabo Frio, na Região dos Lagos, no último dia 25, incomodou defensores do esquema. Durante a Operação Kryptos, deflagrada em conjunto com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime (Gaeco), do Ministério Público Federal e a Receita Federal, foi desarticulado grupo acusado de promover fraudes bilionárias envolvendo criptomoedas. Na ocasião, foi preso Glaídson Acácio dos Santos, de 38 anos, apontado pelas investigações como o coordenador do esquema, que teria movimentado R$ 38 bilhões.
Na última sexta-feira, dezenas de pessoas fizeram uma manifestação nas ruas de Cabo Frio em defesa de Gláidson, argumentando que não tiveram prejuízo, além de reclamar da atuação da imprensa. Manifestações no YouTube usavam funks e evocavam origem humilde dele, acusando a PF de preconceito racial. No Rio, em paralelo, uma carreata passou em frente à sede da TV Globo, alvo de muitas críticas, em especial por ter divulgado as primeiras informações sobre os indícios de irregularidades e popularizado a expressão 'Egito fluminense' para a cidade da Região dos Lagos, pelo acúmulo de pirâmides.
A PF divulgou a transcrição de um grampo telefônico autorizado pela Justiça, em que o ex-garçom, que até 2014 servia mesas em Cabo Frio, aparece conversando com um segurança sobre a visita de um jornalista a um escritório da GAS Consultoria Bitcoin, companhia do empresário que prometia rendimentos exorbitantes mediante investimento em criptomoedas. A transcrição do diálogo consta no relatório da investigação.
“Eu já falei com o senhor, pela segunda vez, e volto a falar. Você tem que fazer reunião com esses caras e falar assim: olha, é ordem do Glaidson, chegou aqui repórter... É pra pegar, pra amarrar, e eu vou decidir o que vai fazer. Não vai fazer nada, só vai segurar. Deixou escapar, saiu descendo pela escada, porra! Não pode isso acontecer não", dispara o empresário para o funcionário no telefonema. O interlocutor responde: "É, ele me ligou, falou que 'teve' um repórter lá, que quando ele chegou na porta, eles saíram correndo".
Na sequência da conversa, Glaidson voltou a orientar a equipe de segurança a intimidar jornalistas: "Tem que chegar... Não vai fazer nada. É ó, me dá a câmera, me dá o celular, você vai ficar aqui...Ah não, você vai ficar aqui! E acabou". O ex-garçom prossegue, e chega a citar o fato de os seguranças trabalharem armados: "Prender aonde? Prender na sala! Não sai! Toma o celular... Tá com arma na mão, pô! Usa a autoridade. Ó, me dá aqui o celular, abre aqui agora! E manda apagar tudo que foi filmado. Aí, liga pra mim!"
Em seguida, o empresário reforça que os seguranças devem entrar em contato com o patrão após abordarem os jornalistas: "Glaidson, ó... Tá aqui, assim, assim, assim. O que que você quer que a gente... O que você quer fazer? Aí, vocês só vão fazer isso... O resto deixa comigo, pô"!
Depois, Glaidson frisou: "Bateu repórter aí no escritório, é pra pegar! Segura! Toma celular, toma câmera, apaga tudo, e fica com o negócio na mão, com celular e com a câmera na mão... E me liga!". Ele persiste: "Só vai liberar eles, quando eu falar assim: pode liberar. Mas eles vão ficar presos no escritório. Eles não chegaram lá querendo falar comigo? Ah, vocês vieram falar com o Glaidson? Então só um minutinho, que ele vai vir. Espera aí. Aí deixa eles lá".
A ameaça ao trabalho da imprensa ajudou a sustentar o pedido de prisão remetido à Justiça pela PF e pelo Ministério Público Federal, assinado pelo procurador da República Douglas Santos Araújo e pelo delegado federal Guilhermo de Paula Machado Catramby. "Os episódios apontam para o fundado receio de que tais investidas também se estendam a testemunhas, mormente diante do forte aparato de segurança do grupo, razão pela qual a prisão preventiva mostra-se também necessária para a conveniência da instrução penal", diz o texto do relatorio.
Nos dois domingos anteriores à prisão, nos dias 15 e 22 de agosto, Glaidson apareceu em reportagens do "Fantástico", da TV Globo. Os conteúdos abordavam denúncias de crime envolvendo supostos investimentos em criptomoedas na cidade de Cabo Frio, na Região dos Lagos, cidade que ficou conhecida como Novo Egito por conta das muitas ofertas de enriquecimento fácil.
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) divulgou nota repudiando as ameaças ao trabalho da jornalista Livia Torres, da TV Globo, inclusive com o uso de carros de som. Eis o teor da nota:
“ABI repudia ameaças a jornalista
Com preocupação, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) tomou conhecimento das ameaças feitas nos últimos dias à repórter Lívia Torres, da Rede Globo, inclusive com a utilização de carros de som. Essas ameaças são represália a matérias jornalísticas sobre o mecanismo denominado pirâmide, no qual um grande número de pessoas foi lesado.
O episódio é gravíssimo e exige providências imediatas das autoridades, identificando e levando à Justiça os responsáveis.
Ameaças a jornalistas têm se multiplicado nos últimos tempos. Em boa medida elas são estimuladas pelo comportamento do presidente Jair Bolsonaro, que hostiliza a imprensa quase diariamente.
A democracia pressupõe uma imprensa livre e é obrigação do poder público impedir qualquer tipo de ameaça ou intimidação.
A ABI reafirma seu compromisso com essa bandeira e manifesta sua solidariedade à repórter vítima das agressões.
Paulo Jeronimo – Presidente da ABI”
Na operação da PF, foram cumpridos sete mandados de prisão preventiva, dois de prisão temporária e 15 mandados de busca e apreensão, nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará e no Distrito Federal. Os mandados foram expedidos pela 3ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro e decorreram de um esforço conjunto entre a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Receita Federal.
Segundo a investigação, a empresa GAS Consultoria Bitcoin, com sede na Região dos Lagos, é responsável pela operacionalização de um sistema de pirâmides financeiras ou “esquemas de ponzi”, calcado na efetiva oferta pública de contrato de investimento, sem prévio registro junto aos órgãos regulatórios, vinculado à especulação no mercado de criptomoedas, com a previsão de insustentável retorno financeiro sobre o valor investido.
Nos últimos seis anos, a movimentação financeira das empresas envolvidas nas fraudes apresentou cifras bilionárias, sendo certo que aproximadamente 50% dessa movimentação ocorreu nos últimos 12 meses. Os investigados poderão responder, na medida das suas responsabilidades, pelos crimes de gestão fraudulenta/temerária instituição financeira clandestina, emissão ilegal de valores mobiliários sem registro prévio*, organização criminosa e lavagem de capitais, e, se condenados, poderão cumprir pena de até 26 anos de reclusão.
Eis o balanço da Operação Kryptos divulgado na ocasião: 15 mandados de busca e apreensão cumpridos; 5 presos, sendo 3 no estado do Rio e 2 em SP, no Aeroporto de Guarulhos (GRU), sendo 1 deles preso, também, em flagrante, por evasão de divisas ($ 25.434); 591 Bitcoins, na cotação de hoje, aproximadamente, R$ 147.750.000,00 em criptomoedas; 21 veículos de luxo; diversos relógios de alto valor; jóias; celulares e demais aparelhos eletrônicos e documentos diversos.
De acordo com a PF e o MPF, em quase seis anos, Glaidson movimentou R$ 38 bilhões. Os dados de maio de 2015 a novembro de 2021 constam de documento do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) citados no relatório do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF), no qual a prisão foi pedida à Justiça Federal. O procurador da República Douglas Santos Araújo e o delegado federal Guilhermo de Paula Machado Catramby afirmam que as cifras são impressionantes e que 44% do valor foram registrados nos últimos 12 meses.