No sábado (11), o Grupo Companhia das Letras, responsável pelo selo infantil Companhia das Letrinhas, retirou de circulação o livro "Abecê da Liberdade", textos de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta e ilustrações de Edu Oliveira. Em alguns trechos, a obra insinua situações como crianças africanas escravizadas brincando nos navios que as traficavam durante a travessia do Atlântico.
Apesar da gravidade do caso, a decisão da editora não mobilizou debates entre apoiadores e detratores nas redes sociais, o que é comum quando se trata de temas sensíveis como racismo, em especial nas artes e no entrenimento. Diferentes veículos da imprensa, especializados ou não em literatura, fizeram uma cobertura razoável sobre o caso, em meio a este fim de semana tomado por manifestações contra o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e pela lembrança de dois episódios marcados pelo 11 de Setembro -- o de 2001, nos EUA, e o de 1973, no Chile.
Editada em 2015 e reeditada no ano passado, a obra está tendo essa repercussão porque trechos vieram à tona após o site UOL publicar matéria na madrugada de ontem para a qual entrevistou especialistas e alguns envolvidos no caso. Um deles foi o próprio Torero, que declarou ao site que "na obra não há a busca de exatidão histórica, a ironia é uma forma de trabalhar a dor". A opinião dele foi contestada pela também escritora Eliana Alves Cruz, por meio de seu perfil no Facebook.
"Devo dizer que li o livro todo. No entanto, não precisaria. (...) Alguém me pediu 'paz'. Não, não estou em paz. Esta paz de alguns não me interessa. Nem mesmo acredito nela… mas, ao contrário desta paz alienante que acham linda, estou sim bem tranquila, focada, segura e não aceito que subestimem meu poder de análise em algo que nos toca tão fundo. E é por isso que seguirei escrevendo tudo o que eu quiser, puder e souber'", afirmou a autora de "O crime do Cais do Valongo", romance histórico-policial sobre o útlimo mercado de escravizados na cidade do Rio. O local foi descoberto em 2011, durante as obras para a construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), e confirmado como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco em 2018.
A deputada estadual Renata Souza (PSoL) tuitou sobre o episódio ainda no sábado à tarde, horas após a publicação da matéria no UOL. Ela classificou como "absurdo" as analogias feitas pelos autores, associando brincadeiras ao martírio da escravidão.
Após a repercussão do caso, Torero publicou neste domingo (12) um artigo no "Jornal Rascunho" onde explica que se sente "pisando em ovos" quando escreve para o público infantil. "Um veterano autor me disse que hoje, ao fazer um livro para crianças, se lembra dos tempos da ditadura, quando escrevia num grande jornal e tinha que tomar cuidado com a escolha de cada palavra, porque ela poderia ser censurada. Enfim, é claro que um escritor não quer ofender seus leitores. Quer cativá-lo, seduzi-lo, fazer com que ele fique preso ao livro até a última página. Mas também não quer abrir mão da alegria de escrever, de imaginar, de inventar mundos, de dizer o que pensa. E isso não está fácil", resigna-se ele, atribuindo a decisão da editora a "vigilância de patrulhas ideológicas".
Torero se posicionou dessa forma mesmo após a Companhia das Letras, por meio do seu selo infantil, o Companhia das Letrinhas, pedir desculpas, reconhecer o erro editorial e anunciar o recolhimento dos exemplares à venda em livrarias bem como os volumes em estoque. "Estamos dispostos e abertos para aprender com esse processo, para dele sairmos, todos nós, muito melhores", disse a empresa em nota que reproduzimos no final desta matéria.
Desde a primeira edição, o livro foi publicado na coleção "Historinhas do Brasil", originalmente pela Alfaguara, da Objetiva, adquirida pela Companhia das Letras e em seguida adicionada ao catálogo da Companhia das Letrinhas. Também em 2015, quando a Alfaguara/Objetiva ainda não tinha sido vendida, o trio lançou "Entre raios e caranguejos", que conta a fuga da família real portuguesa para o Brasil em 1808 pelo olhar de D. Pedro I, então com dez anos.
O "Abecê da Liberdade" conta a história de Luiz Gama (1830-1882), que nasceu livre durante a escravidão e aos dez anos foi vendido como escravizado, pelo próprio pai. Natural de Salvador (BA), foi recusado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, depois incorporada à Universidade de São Paulo (USP), e se tornou advogado autodidata. Abolicionista, lutou nos tribunais pela liberdade de escravizados que viviam em várias províncias (os atuais estados) do Brasil. Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) concedeu a ele o diploma de advogado post-mortem, tendo três anos depois recebido o título de Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil. Está inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, como se pode ler no site da Biblioteca Nacional. Suas vida e obra têm sido redescobertas, ficando o legado dele cada vez mais em evidência, por meio de livros (como a coletânea "Liberdade (1880-1882)", editada pela Hedra em 2021 e organizada por Bruno Rodrigues de Lima), peças de teatro ("Luiz Gama - Uma Voz Pela Liberdade" (2018), autoria de Déo Garcez, que também atua) e filmes ("Doutor Gama" (2021), direção de Jeferson De).