Em outubro de 2021, o domingo (24) entrou para a história do Chile como o dia em que o "El Mercurio" publicou um insólito perfil biográfico. Trata-se do jornal de maior circulação do país sul-americano, e a matéria teve como mote os 75 anos da morte de Hermann Göring (1893-1946), oficial do Alto Comando nazista apresentado como "o sucessor de Hitler". O aniversário se completou cerca de dez dias antes da edição em que o texto foi publicado.
Então, por que homenagear um dos responsáveis pelos assassinatos em massa de milhões de seres humanos? Alguns dos entrevistados pela reportagem não têm essa resposta, mas refletem sobre o contexto atual no país sul-americano, que terá eleições gerais no final de novembro e está em vias de votar uma nova Constituinte.
O cientista político David Altman se mostra incrédulo com a publicação, apesar de recusar associações simplistas.
"A ruptura democrática [com o golpe de Pinochet, em 1973] não pode ser endossada pela presença de nazistas no Chile, tampouco na Argentina, Uruguai etc. Os golpes têm muito mais a ver com a Guerra Fria e outros asuntos. A estrutura principal da Constituição em vigor vem de 1980 e há um consenso de que é herdeira da ditadura, ainda que durante a democracia tenha sido alterada em diversos aspectos", afirma o professor da Universidade Católica do Chile. "O 'El Mercurio' era ligado à ditadura, mas muitos outros [jornais] também e não publicam essas barbaridades".
Altman ainda recomendou a edição do programa "Estación Central", transmitido pela rádio da Universidade de Santiago. Na entrevista concedida pelo sociólogo Daniel Chernilo, ele destacou que "a ideia de crimes contra a humanidade surge juridicamente, a partir dos horrores levados a cabo por gente como Göring". Para ler o resumo e ouvir o programa na íntegra, ambos disponíveis em espanhol, clique aqui.
Presidente da federação de organizações da comunidade judaica local, Gerardo Gorodischer também lamenta a publicação da matéria, em meio a um contexto que a sociedade chilena busca valorizar outros aspectos. "O Chile está elaborando uma nova Constituição onde o respeito às minorias, aos direitos humanos dos povos originários, a situação dos imigrantes são temas que tocam em muitas sensibilidades", explica ele. "Uma coisa é informar, contar e educar, outra é chamar de herói quem foi um assassino. Um erro muito grande daqueles que devem ter certos filtros".
O cineasta Silvio Tendler, diretor de "Utopia e Barbárie" (2009), no qual relatou sua passagem por diferentes países ao longo de quase 40 anos de carreira, incluindo o país andino, resume o que viveu. "Eu saí do Chile antes de o Pinochet assumir. Na época, o nazismo era uma memória incômoda apenas para os judeus. O jornal, opositor do governo de Salvador Allende, é americanófilo e ligado à Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol)".
Vivendo no Chile há 16 anos, o jornalista Victor Farinelli comenta que o debate sobre uma nova lei de imprensa, embora necessário, não é o mais importante desta Constituinte. "Se a gente pegar coisas como a plurinacionalidade, o direito à água, fortalecimento dos sistemas públicos de educação, saúde e previdência, igualdade de gênero, sistema político menos centralizado, acho que esses temas passam na frente em prioridade", opina o correspondente do site "Opera Mundi", pai de um jovem de 15 anos, já nascido chileno.
Nesse cenário, ele vê pontos positivos. "Acho que, mais que a minha reação pessoal, é o debate que esse fato desperta sobre os limites ou não da liberdade de imprensa, ou a responsabilidade da imprensa na hora de exercer essa liberdade, que tem que existir, claro. Mas também pode ser passível de limites éticos, é muito relevante o fato de que essa polêmica tenha surgido em um momento que o Chile tem uma Assembléia Constituinte instalada, a primeira da história do país, com paridade de gênero e eleita pelo povo. É a instância ideal e legitimamente capaz de estabelecer os novos parâmetros sobre as comunicações no país e definir um novo equilíbrio para que o país tenha liberdade de expressão e de imprensa".
A Lei de Imprensa em vigor completa 20 anos em 2021, que já tinha sido marcado pela primeira reportagem sobre um oficial nazista no mesmo jornal. Porém, segundo Gorodischer, se desta vez todos os candidatos nas prévias eleitorais rechaçaram a matéria, e os judeus chilenos ficaram "indignados" ("Nas redes sociais, 94% das postagens foram de desaprovação e apoio à comunidade judaica"), da outra a ofensiva militar de Israel em Gaza, que desencadeou protestos de massa também na Cisjordânia, não atraiu tanta atenção.
"Acredito que falta conhecimento e sensibilidade em relação a personagens tão nefastos para a história e a humanidade, em maio também fizeram algo parecido com Rudolph Hess. A comunidade judaica não reagiu com veemência porque as noticias estavam voltadas para outro assunto", pondera o representante.
Na segunda-feira (25/10), dia seguinte à veiculação da matéria, Gorodischer se manifestou por meio de carta reproduzida pelo jornal. "Quando o negacionismo se torna uma arma perigosa, exaltar a imagem de Hermann Göring é uma vergonha. Por isso, é cada vez mais importante recordar o Holocausto com um claro objetivo: prevenir futuros genocídios", diz um trecho do texto, assinado em conjunto com Marcelo Isaacson, diretor executivo da entidade. Por meio de nota, o periódico respondeu que "não teve a intenção de fazer apologia nem ofender as vítimas. Entendemos, no entanto, que abordar este tema delicado exigia melhor tratamento".
A reportagem do Portal Eu, Rio! conseguiu entrar em contato com um jornalista que trabalha na redação do "El Mercurio", porém ele se limitou a responder que "não tem permissão para comentar assuntos internos do jornal".
Coordenador do Departamento de História do Museu do Holocausto de Curitiba, onde se divide com o trabalho de mediador educativo, o historiador Michel Ehrlich avalia com cautela o significado da reportagem. "Fico pensando como isso se insere no atual cenário político chileno, acho que essa reportagem fala muito mais sobre o presente do Chile do que o passado da Alemanha".
Em resposta à jornalista e deputada constituinte Patricia Politzer, a Embaixada da Alemanha no Chile lamentou a publicação do texto, por meio de sua conta oficial no Twitter. "Este personagem foi um dos pilares do regime nazista e isso não permite justificar ou minimizar moral e ou politicamente seu papel nefasto durante o nazismo e no Holocausto", afirmou.
Outro historiador consultado pela reportagem foi o professor Daniel Pinha Silva, professor do Departamento de História da UERJ. Integrante de grupo de pesquisa que estuda democracia, cultura e experiência histórica com ênfase na América Latina, a partir de 1945 (ano final da II Guerra Mundial), ele destaca que os atuais regimes antidemocráticos na região "relativizam a violência", não "descartariam o legado nazista" e priorizariam a memória das ditaduras dos últimos sessenta anos.
"Penso que os governos de matriz neoconservadora, autoritária, antidemocrática, na América Latina, hoje, não costumam reivindicar o legado do nazismo. Eles tentam inclusive se distanciar do legado direto. O que a gente observa em alguns casos é um certo tipo de unidade pragmática, de relativização da violência, uma certa complacência. Recentemente, o presidente da República, Jair Bolsonaro, se encontrou com uma liderança neonazista, mas ele não reivindica diretamente este legado. Eu diria que é algo que não está no horizonte mais imediato desses regimes, não é exatamente o que eles pretendem agora, mas não descartariam isso, se por exemplo fosse necessário em nome de uma guerra cultural com a esquerda. Eles dialogam mais com a segunda metade do século 20, aquele contexto de propagação da Guerra Fria, por meio da Operação 'Brother Sam'. Eles estão mais nessa linha de influência norte-americana, que pode lançar mão de prerrogativas antidemocráticas. Talvez seja mais evidente desses regimes contemporâneos antidemocráticos na América Latina, reivindicação de uma memória positiva desses regimes dos anos '60 e '70".
A respeito dos debates travados na Constituinte, em meio a uma campanha eleitoral que vai eleger o próximo presidente chileno em 21/11, Farinelli enfatiza as mudanças que podem ocorrer na área da comunicação. "O eixo é entre defender uma maior pluralidade ou manter os parâmetros atuais, atualizar essa lei de imprensa, não só para considerar as novas tecnologias, mas principalmente defender um maior incentivo aos meios regionais, e uma pluralidade de meios que resulte em mais espaço para movimentos regionais, sociais, nações originárias, movimento feminista, movimento LGBTQIA+, entre outros". Ele ainda admite a possibilidade de serem aprovadas políticas de repúdio a apologias como o nazismo, a exemplo do que existe na própria Alemanha. "Mas não sei se seria uma maioria de dois terços, que é o necessário para aprovar um novo artigo", ressalva.
Natural da Baviera, região ao sul do país europeu, Hermann Ernst Göring serviu na I Guerra e era tido como um exímio aviador, por isso recebeu a alcunha de "Ás da Aviação" e foi condecorado com a medalha "Pour Le Mérite", mais alta honraria concedida pelo então governo da Prússia (território que abrangia onde hoje ficam países como Alemanha e Áustria). Na carreira militar, chegou à patente de marechal e chefiou a Luftwaffe, a força aérea alemã. Durante o regime nazista, foi responsável pela criação da Gestapo, a polícia secreta do governo de Adolf Hitler (1889-1945), e acabou condenado à forca pelo Tribunal de Nuremberg, a exemplo de dez oficiais ou figuras proeminentes do nazismo. Suicidou-se em 15/10/1946, na véspera de quando seria enforcado. Já Rudolf Hess recebeu a pena de prisão perpétua. Dos 22 réus julgados, após dez meses em que transcorreu o processo, três foram absolvidos.
O site do Museu de Memória do Holocausto dos Estados Unidos (USHMM, na sigla em inglês) disponibilizou trechos dos julgamentos realizados em Nuremberg, incluindo o de Hermann Göring, com falas em alemão e inglês. É possível ler a transcrição dos diálogos em português. Clique aqui para assistir a uma parte.
Ouça, no Podcast do Portal Eu, Rio!, a entrevista concedida pelo professor da UERJ, Daniel Pinha Silva.