Na noite de ontem, segunda-feira (20), a Câmara Municipal de Macuco (RJ), no Centro-Norte fluminense, sediou uma reunião sobre o leilão da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae), sob gestão da Prefeitura local. Assinado o termo de concessão pelo prefeito Bruno Boaretto (PL), esta foi, em parte devido à pandemia, a primeira e ao que tudo indica única oportunidade para a população macuquense bem como os trabalhadores da Cedae na cidade e região se reunirem para tratar do tema na cidade, antes do leilão agendado para 29/12, na última quarta-feira de 2021.
Antes do início da sessão, a reportagem do Portal Eu, Rio! conversou com dois funcionários da Cedae, um deles o engenheiro Gustavo Boaretto, que participou da pressão a duas Comissões da Câmara, no prédio que leva o nome de seu pai, José Carlos Boaretto, que foi prefeito da vizinha Cordeiro. “A gente acionou as Comissões de Justiça e Defesa do Consumidor para que dessem oportunidade que a população tomasse conhecimento do que está para acontecer”, contava o primo do prefeito. Durante a reunião, que, além dos trabalhadores, envolveu sindicalistas do setor e habitantes da cidade, o Boaretto mais poderoso se disse “orgulhoso” dos parentes que trabalham na empresa pública.
Ainda na porta do Legislativo municipal, conversando com Ricardo Teixeira, “cedaeano” de Teresópolis cedido a Bom Jardim – a 37 km de Macuco –, ele explicava que a “Cedae continua existindo”, ressalvando a que preço. “Estão havendo concessões municipais devido ao Marco Regulatório federal, vindo de cima para baixo, um movimento para a entrega dos serviços de tratamento de água e esgoto para a iniciativa privada. A Cedae tem que cumprir os contratos que estão em vigor, hoje. Já existem vários Municípios que chegaram a manifestar, por escrito, a entrada no bloco, e, depois de audiências públicas, de bastante informação, resolveram sair. São bem maiores e têm um peso financeiro muito maior do que municípios como Macuco”, comentou ele.
A desistência do prefeito Boaretto, no entanto, foi no sentido inverso. Além dos parentes que trabalham na empresa de saneamento básico, o orgulho dele paira sobre si, quando se recordou de ter ido até a capital, distante mais de duas horas e meia em veículo de passeio, para mobilização em prol dos trabalhadores e do patrimônio público. “Fui um dos únicos prefeitos que se propôs a sair da sua cidade e ir na Alerj defender a Cedae, os funcionários da Cedae. Naquele momento, eu falei que era válida a continuidade da Cedae, que apesar de pouquíssimo investimento em esgoto na minha cidade, na distribuição e tratamento de água atendia bem, apesar de várias melhoras que eram necessárias. Melhoras essas que tinham que vir do estado”, disse o mandatário, falando da tribuna da Câmara, a exemplo dos que o antecederam, para cerca de 150 presentes que se aglomeravam no auditório e se estendiam até o hall de entrada, antes de chegar à calçada em frente ao imóvel que destoa na paisagem.
Mas a pequena Macuco, cidade com a menor superfície territorial do estado do Rio (78,364 km2, segundo dados do IBGE de 2020), além do baixo índice populacional (5.434 habitantes, dados do IBGE em 2016), conserva virtudes que fazem a maioria das cidades interioranas do Brasil estufar o peito de alegria: o ritmo pacato do povo, a calmaria local – mesmo no centro urbano –, a limpeza urbana. Em que pese as vias bem-cuidadas, o chefe do Executivo municipal salientou durante a reunião de ontem à noite que “o Marco Regulatório do Saneamento Básico obriga os municípios, até 2033, a tratarem 90% do esgoto”. “E a tratarem, entregarem, distribuírem”, prosseguiu, “99% da água. Ok, a água aqui está bem encaminhada, mas e o esgoto? São mais de R$ 40 milhões que Macuco precisa para investir. A gente não tem como tocar”. Dos dez bairros da cidade, apenas a Glória, o mais recente a ser legalizado, conta com saneamento total – água e esgoto. De acordo com o Censo 2010, porém, o município tinha quase a íntegra de sua rede de esgoto dentro do que o IBGE chama de “adequado” (97,4%), o que não significa que fosse tratado.
A conta, na prática e como trocadilho, chega fora da realidade para cada vez mais fluminenses. É que, em 2017, com a assinatura do Regime de Recuperação Fiscal, selado pelo então governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, a Cedae foi dada como garantia de pagamento do ente estadual à União. Ao preço inicial único de R$ 3 bilhões, a empresa foi fragmentada em blocos de 1 a 4, totalizando R$ 22 bilhões no somatório dos dois primeiros com o último, após o leilão realizado em abril de 2021.
Restando apenas o bloco 3, que, além de Macuco, inclui municípios como Angra dos Reis, Carmo e São Fidélis e bairros da zona oeste da capital fluminense. A presença ostensiva de organizações criminosas ligadas ao tráfico ou à milícia em algumas dessas áreas encontrou justificativa para a ausência de proposta de qualquer concessionária à Cedae, por isso o martelo não foi batido quase sete meses atrás. Desta vez, salvo liminar judicial adiando a concessão, o bloco 3 será licitado na semana que vem.
“Para os leilões anteriores, uma firma ganhadora, a Iguá, está sendo questionada judicialmente”, exemplificou o engenheiro Boaretto, sobre episódio que poderá se repetir já nos próximos meses.
Bate-boca no plenário
Concursado da Cedae há 15 anos, Luidi Boquimpani valorizou o bem público na mesma proporção em que defendeu o direito ao saneamento básico. “O que a gente mais tem que defender é a água. A concessão da água, da maneira que está sendo feita – mas ainda dá tempo de salvar –, eu acho que não é legal, vide os vários municípios vizinhos que já foram concedidos e a população está pagando caro. Muito caro!”, afirmou ele, ostentando alguns documentos que avalizam seus argumentos. Um desses era o contrato firmado em 2002, entre o então prefeito Mauricio Bittencourt e a Companhia, válido por 30 anos, portanto válido por mais uma década. “E depois, com quem a gente vai reclamar? Qual é a necessidade de rasgar um contrato desse? A Cedae é uma empresa superavitária, riquíssima”.
Os momentos de maior tensão durante a reunião ficaram reservados às trocas de ofensas entre o procurador do Estado, Augusto Werneck, e o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos de Niterói e Região (Sindágua-RJ), Ary Girota. Chamado de “preposto do Governo”, Werneck retrucou com “mentiroso”, insistindo que o opositor se prestava a “demagogia”, antes de ameaçar reiteradas vezes abandonar o plenário da Câmara.
Representante dos trabalhadores da Cedae em Macuco, Girota enfatizou que o capitalismo distorce o equilíbrio das relações e subjuga as pessoas. “Ninguém fala, por exemplo, que nos municípios que têm contrato de concessão assinado com uma empresa pública – no caso do Rio de Janeiro, a Cedae – podem ser mantidos, devem ser respeitados, desde que cumpridas as regras. À luz da [Lei] 14.026[/2020], os municípios que não têm continuidade territorial podem se consorciar, ou seja, fazer um grupo, criar uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) e, com isso, em convênio com o Governo do Estado, tomar uma decisão de manutenção da prestação de serviço público pela Cedae a esse consórcio. Mas isso não é falado porque o poder econômico envolvido despreza a todos, indistintamente. Porque, como está escrito na camisa, “Cedae privatizada, quem vai pagar a conta é você!”.
Sem a devida publicidade para a audiência pública realizada em abril de 2020 (diz Gustavo Boaretto que a Câmara poderia atribuir à pandemia para não ter convocado a população), Boquimpani revelou sua resignação pela sessão de ontem, bem como quando, no primeiro mês da pandemia no Brasil, apenas ele e um colega de trabalho tenham comparecido ao debate presencial. Ainda assim, sem direito a se pronunciar.
“Toda Lei Orgânica Municipal”, disse Ricardo Teixeira, “versa sobre a cessão ou concessão ou permissão de serviços públicos para empresas privadas. Isso tem que passar pelo crivo popular, audiência pública com resultado publicado. Em alguns municípios, o prefeito simplesmente assinou o acordo, concedendo ao ente federal a prerrogativa de que o Município tem que versar sobre os recursos hídricos”, esmiuçou, em conversa exclusiva com o Portal Eu, Rio!, fora da Câmara, sendo complementado por Boquimpani já no plenário. “Essa reunião deveria ter ocorrido bem antes, de preferência no ano passado, quando a população poderia ter pelo menos a oportunidade de ter sido consultada com relação ao saneamento básico, à água”, protestou. O 'cedaeano' elencou problemas que já se acumulam na gestão da água de outros municípios do estado do Rio - Cordeiro, Cantagalo, Duas Barras, Santa Maria Madalena, São Sebastião do Alto, Trajano de Morais -, fato minimizado pelo procurador do Estado.
Apesar das diferenças, o servidor, auxiliar de setor da Cedae, encontrou eco no advogado estatal. “Tínhamos que adaptar os mecanismos de participação popular à pandemia. Por isso, houve seis audiências públicas por Zoom das quais eu fiz parte. E que as pessoas teriam e puderam participar”, pontuou ele. O advogado ainda sugeriu que caso a empresa seja concedida e o contrato, firmado por 35 anos, a Câmara dos Vereadores convoque audiências públicas anualmente para cobrar a prestação do serviço junto à empresa que vencer a licitação.
“Rompimentos de contrato são possíveis, mas têm que passar por um crivo legal. Como a Cedae, de um dia para o outro, pode vir a não prestar um serviço de essencialidade? O munícipe não sabe quem vai assumir porque é uma concorrência, agora cadê um documento que pudesse ser apresentado por escrito, assinado, ou carta de intenção oficial dizendo o que vai ter que ser feito? Pode acontecer uma coisa que ninguém está esperando e criar um problema para o próprio prefeito que está acreditando nessa concessão que o estado do Rio está fazendo”, acrescentou Teixeira.
A título de comparação, ele citou o caso de Teresópolis, repetido por Boquimpani dentro do Centro Administrativo José Carlos Boaretto, onde funciona a Câmara Municipal de Macuco: ou o prefeito acatava a decisão dos vereadores, no sentido de municipalizar o serviço de água e esgoto, ou seria aberto processo de impeachment. “Se ainda houver o interesse dos munícipes, dos vereadores, e se isso for de forma com que o prefeito tenha que recuar na decisão dele, é perfeitamente possível”, esperançava ele, a pouco mais de uma semana do prazo do leilão.
Dias antes da reunião, um carro-de-som passava por vários pontos da cidade conclamando a população a participar da iniciativa que se concretizou na última segunda-feira.
Assista, no vídeo abaixo, a alguns trechos das falas feitas ontem na Câmara dos Vereadores de Macuco; clique no player para saber quem é cada um dos oradores.
Fim de 2021 e início de 2022
Horas antes, pela manhã e até o início da tarde, em evento no Parque de Exposições Edgard Rodrigues Luterbach – conhecido como Rural Park –, Bruno Boaretto entregou uma cesta com produtos natalinos para cada servidor municipal de Macuco, em nome da Prefeitura.
Ainda de acordo com o IBGE, dados de 2019 apontavam que o salário médio dos trabalhadores formais locais era de R$ 1,8 mil, tendo 1.759 pessoas ocupadas no município, ou 31,4% da população total; de acordo com o Instituto, no ano de 2010 um em cada três macuquenses tinha renda mensal per capita de até ½ salário mínimo (33,6%). Fonte ouvida pela reportagem relatou que a partir de janeiro de 2022, as 400 famílias mais pobres da cidade devem começar a receber auxílio no valor de R$ 180,00 mensais, totalizando R$ 72.000,00 para o orçamento municipal. A princípio, o cadastro será iniciado nos próximos dias, antes do Natal.
Ouça, no Podcast do Eu, Rio!, as opiniões respectivamente de Gustavo Boaretto e Ricardo Teixeira, ambos funcionários da Cedae no interior do estado do Rio.