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Especialista comenta possível prisão de homem em telhado: "avaliação não abarca as condições de saúde mental pregressas do indivíduo"

Mesmo com histórico de tratamento humanizado no Brasil, incluindo a Reforma Psiquiátrica iniciada há mais de 40 anos, especialidade também tem histórico de cortes orçamentários e políticas públicas descontinuadas

Por Daniel Israel em 25/02/2022 às 20:17:51

Instituto que leva o nome da psiquiatra Nise da Silveira é referência no atendimento à saúde mental, na cidade. Foto: Instituto Municipal Nise da Silveira/Divulgação

Nesta sexta-feira (25), dia seguinte ao caso do homem que subiu no telhado de um mercado em Neves, São Gonçalo, a reportagem do Portal Eu, Rio! entrou em contato com a enfermeira Bárbara Lima, especialista em saúde mental e que trabalha em equipamento da Secretaria Municipal de Saúde do Rio.

A profissional de saúde explica os procedimentos para o melhor atendimento às pessoas que passam por sofrimento mental. "Tratando-se de uma pessoa, que está oferecendo algum tipo de risco para a integridade física dela ou de outros, como foi o caso desse rapaz, acionar o Corpo de Bombeiros foi importante, considerando que eles costumam atuar nesses momentos em que outras abordagens não foram possíveis ou eficientes", diz ela.

"Os bombeiros direcionam para a emergência psiquiátrica de referência. Uma das propostas da Reforma [Psiquiátrica] é que esses leitos de psiquiatria estivessem alocados nos hospitais gerais, mas essa não é a realidade do Rio de Janeiro e acredito que muito menos de São Gonçalo", acrescenta.

A Reforma Psiquiátrica teve início nos anos finais da ditadura civil-militar (1964-1985), durante o período da chamada "abertura lenta, gradual e segura", e propôs o fim da institucionalização dos pacientes atendidos pelos serviços de saúde mental. Era parte de um movimento mais amplo, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB), que levou à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1985, e sua regulamentação cinco anos depois.

Mas foram relatos como os do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que em 1976, durante visita ao Hospital Colônia, em Barbacena (MG), identificou que ali se reproduzia uma estrutura semelhante à dos campos de concentração nazistas, que corroboraram a necessidade de o Estado brasileiro abandonar a política repressora adotada nos manicômios. Esses aparelhos foram reconfigurados, para oferecer tratamento humanizado às pessoas com diferentes níveis de transtorno mental.

Isto significa dizer que homens e mulheres, jovens, adultos e idosos, passaram a ser compreendidos a partir de suas subjetividades, progressivamente estimulados a se expressar, por exemplo, por meio de manifestações artísticas, sobretudo pintura e escultura, dentro de oficinas de arte-terapia.

Ainda que esta fosse uma referência praticada no Brasil desde o início do século 20, pelas mãos de psiquiatras como Juliano Moreira (diretor de 1903 a 1930 do Hospital Nacional de Alienados, onde hoje funciona em parte o Instituto Philippe Pinel) e Nise da Silveira (à frente da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, a partir da década de 1940, atualmente o Instituto Municipal de Assistência à Saúde que leva seu nome). Desdobramentos mais recentes da Reforma Psiquiátrica podem ser vistos na criação de blocos carnavalescos, como Tá Pirando, Pirado, Pirou... - realizado por profissionais e pacientes do Instituto Philippe Pinel - e Loucura Suburbana - ligado ao Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira.

O médico psiquiatra Juliano Moreira foi pioneiro, no Brasil, no atendimento humanizado a pacientes com transtornos mentais: sob sua gestão no Hospital Nacional dos Alienados, na zona sul do Rio, Lima Barreto esteve internado na unidade em três momentos, entre 1914-1919. Foto: Domínio Público

Política pública sem efetividade

O local onde Bárbara trabalha pertence à rede municipal de saúde mental municipal e está situado em bairro vizinho ao Engenho de Dentro. Essa zona de influência ajuda a compreender avanços e retrocessos na política de saúde mental, penalizada com a aprovação da EC 95, aprovada em 2016. A medida congelou os orçamentos da saúde, educação e assistência social em âmbito federal por 20 anos, o que prejudica o repasse de verbas aos estados e municípios.

"Atualmente, após o resgate dos bombeiros, a pessoa em sofrimento psíquico é levada para atendimento em um emergência psiquiátrica (na maioria das vezes), onde passa por avaliação e são iniciados os cuidados. Quando contamos com uma rede de atenção psicossocial estruturada, o ideal é que esse atendimento inicial se desdobre no cuidado nos CAPSs (Centros de Atenção Psicossocial). Entretanto, alguns municípios do Rio são mais sucateados e não contam com essa estrutura tão definida", avalia.

A enfermeira também comentou a possibilidade de prisão, em casos como na manhã de ontem, envolvendo o homem identificado apenas pelo nome de Carlos Henrique S. Guedes. "A princípio, a Justiça solicita uma avaliação psiquiátrica para que isso possa ser somado aos dados do caso. A partir dessa avaliação (que costuma ser pontual, recorte de uma situação mais ampliada, que não diz só do momento em que o homem sobe no telhado etc.), a Justiça determina os direcionamentos. Considerando que não abarca a possibilidade de levar em consideração as condições de saúde mental pregressas do indivíduo, por vezes se apegando apenas ao episódio, nesse caso, ao fato de o homem ter arremessados objetos, subido no telhado etc", lamenta.

"Para além disso, não podemos desconsiderar as questões raciais e socioeconômicas que estão fortemente associadas ao possível encarceramento ou não", conclui.

A Prefeitura de São Gonçalo (PMSG) respondeu em parte ao nosso contato, sem mencionar investimentos realizados na política de saúde mental local. "O fato deve ser comunicado na delegacia da área. Os demais trâmites são de determinação da autoridade delegada", esclareceu o Executivo municipal.

Tivemos acesso ao número do Registro de Ocorrência, feito na 73ª DP (Neves), e a Polícia Civil informou que o caso foi descrito como dano ao patrimônio público. "Os agentes aguardam a liberação médica do acusado para ser ouvido na delegacia", complementou o órgão estadual.

Sobre o caso

Na madrugada de ontem (24), Carlos Henrique S. Guedes - sem idade, profissão e residência reveladas - teria destelhado um imóvel na Praça do Vila Lage, no bairro de Neves, em Sao Gonçalo, e lançado materiais utilizados na construção civil contra veículos que passavam em frente, por volta das 3h. No local, moram pelo menos mãe e filho, que não quiseram conversar com a reportagem.

Carlos Henrique, então, escalou as fachadas e subiu nos telhados, até chegar ao do Super Fênix, mercado que fica cerca de 100 metros à frente, na mesma calçada. Ele permaneceu cerca de cinco horas no topo da edificação, até ser resgatado pelo Corpo dos Bombeiros, por volta das 9h. Foi levado até a Emergência psiquiátrica do Hospital Municipal Dr. Luiz Palmier, no Zé Garoto, área central de São Gonçalo.

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