Aconteceu na sala de espera de um secretário de estado do Rio de Janeiro. A equipe de TV, composta por um jornalista, um cinegrafista e um técnico de áudio, estava pronta para entrevistar o titular da pasta. A assessora do secretário entra na sala e, à distância, cumprimenta informalmente os dois integrantes negros da equipe. Em seguida, se dirige ao único homem branco da equipe de TV para, formalmente, o cumprimentar:
"Boa tarde! O secretário já vai receber você". Minutos depois, a assessora volta à sala e novamente se dirige ao homem branco: "Só mais um instante. Eu já venho buscar vocês".
Na terceira abordagem, enfim, a assessora chama a equipe de reportagem e a conduz até à sala do entrevistado. Já no caminho entre a sala de espera e o gabinete do secretário, ela mais uma vez se dirige ao homem branco: "Você pode me adiantar as perguntas que fará ao secretário?" E o homem branco responde: "Eu até poderia, se fosse o jornalista. Mas o jornalista aqui é ele", explica, apontando para um dos dois homens negros, que compunham a equipe . Eu sou apenas o cinegrafista."
A assessora tentou se retratar, mas não havia como. Estava claro que, dentro da cabeça dela, num ambiente onde houver dois homens negros e um branco, o homem branco sempre estará no comando e os negros só podem ser os subalternos. Esse é o preconceito inalcançável pelas leis contra o racismo. O preconceito impresso nas estatísticas que revelam o Brasil como uma das nações de maior desigualdade étnica e social de todo o planeta.
Essa reportagem poderia despejar sobre vocês, leitoras e leitores, um caminhão de números que ilustram perfeitamente a condição do negro no Brasil, mesmo depois de 130 anos do fim da escravidão. Certamente as estatísticas são importantíssimas para o desenvolvimento de políticas públicas que diminuam nossa vergonhosa desigualdade. Mas no lugar de uma análise dos números frios, optamos pelo convite a uma reflexão mais humana.
Aí mesmo, do lugar onde você está lendo essa matéria, olhe ao redor. O que você vê? Se você estiver no trânsito - espero que não esteja dirigindo e mexendo no celular -, certamente verá meninos vendendo doces ou fazendo malabarismo nos sinais. São meninos negros? Talvez você esteja lendo a matéria dentro de uma boa universidade. Olhe ao redor. Quantos alunos negros você consegue contar? Ah, você está - ou esteve - aproveitando o feriado do Dia da Consciência Negra no shopping? Dê uma olhadinha aí.
A moça que está atendendo atrás de um balcão na praça de alimentação, como ela é? E a que foi contratada para ser vendedora da loja de grife, ela é igual a que trabalha na praça de alimentação? Ah, você está lendo nossa matéria aí no conforto do seu lar? Vai ligar a TV daqui a pouco para assistir a novela? Por favor, nos diga: Os protagonistas da sua trama preferida são negros? Ah, você não assiste novela, só telejornal? Então, por favor, verifique quantos jornalistas negros, apresentando ou fazendo reportagens, você verá no vídeo hoje. O quê, a emissora que você assiste não tem jornalistas negros? Caramba! Será que a assessora do secretário tinha razão em não conseguir enxergar aquele rapaz negro como jornalista?
Através de estatísticas divulgadas pelo IBGE, essa realidade presente em nosso dia a dia foi apresentada a Otair Fernandes, doutor em ciências sociais e coordenador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E o professor respondeu ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística da seguinte maneira:
Talvez tenha sido com esse objetivo que em 2003 foi criado o Dia da Consciência Negra. Atualmente, a data é "comemorada" em mais de mil municípios brasileiros. Boa parte desses municípios oferece em 20 de novembro um variado cardápio de eventos, nos quais o negro é protagonista. Branco, índio, amarelo... todos comemoram o Dia da Consciência Negra. Afinal, é feriado! E nas cidades em que o sol brilhar nesta terça-feira, veremos famílias passeando ao ar livre. Algumas, inclusive, levarão junto as babás de suas crianças. E não será difícil encontrar entre as babás uma que seja negra, e que tenha deixado seu filho negro sozinho em casa para cuidar do filho da patroa, em pleno feriado da Consciência Negra.
E na porta dos presídios espalhados por todo o país também veremos mães negras formando uma imensa fila para visitar seus filhos negros. Eles são maioria entre a população carcerária, afirma o IBGE. E nos postos do Instituto Médico Legal espalhados por todo o país certamente e, infelizmente, alguma mãe estará solicitando a liberação do corpo negro de seu filho, porque o jovem negro é o que mais morre nesse país, afirma o IBGE.
E alguns trabalhadores negros vão lamentar que no Dia da Consciência Negra seja feriado, e que por essa razão as agências de emprego não vão funcionar, os impedindo de procurar trabalho, nesta terça-feira. É que o trabalhador negro continua sendo maioria entre os desempregados desse país, afirma o IBGE. E o negro também é maioria nas favelas, entre os analfabetos, entre os trabalhadores de baixa remuneração..., afirma o IBGE.
A dura realidade que nos coloca no topo do ranking da vergonha vai muito além dos dados do Ipea. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Brasil está entre os 5 países mais desiguais do mundo. Uma realidade que muitos que se encontram numa posição mais confortável - brancos, amarelos, índios e também negros - fingem não enxergar. Que neste Dia da Consciência Negra, tenhamos consciência de que esse país só será melhor quando todos estiverem verdadeiramente empenhados em combater nossas desigualdades étnicas e sociais.
"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, À IGUALDADE, à segurança, e à propriedade nos termos seguintes"
Artigo 5 da Constituição Federal