A área pré-frontal do córtex corresponde à parte anterior do lobo frontal, não motora, e constitui o reflexo mais sofisticado da evolução humana. Evolutivamente falando, foi a última região cortical a se desenvolver. É nessa área que ocorrem os processos mentais, comportamentais e cognitivos mais complexos. Ela é, por exemplo, responsável pela escolha das opções e estratégias comportamentais, pela manutenção da atenção, pelo planejamento e pelo controle do comportamento emocional.
Semelhanças separadas por dois séculos
As coincidências são muitas. Além das semelhanças nos acidentes, idades e níveis de escolaridade, ambos perderam cerca de 15% da massa cerebral, sendo que no caso de E.L. a lesão foi no lobo frontal direito e a de Gage, no esquerdo. No entanto, a pesquisa com o brasileiro conseguiu contar com uma série de recursos não disponíveis na época do americano, como tomografia, eletroencefalograma, ressonância magnética, modulação da atividade elétrica cerebral e exames neuropsicológicos estruturados para avaliar disfunções do lobo frontal, que ajudaram a estimar as lesões e suas consequências.
A partir daí os registros diferem. Relatos indicam que Gage, após o acidente, se tornou irritadiço, grosseiro e indisciplinado. É comum ver descrições de que ele “não era mais o mesmo homem”. E.L., no entanto, não mostrou alterações no comportamento, mas apresentou outros sintomas, como epilepsia pós-traumática, controlada com medicamentos.
“Inicialmente, Gage não teve alteração no comportamento. Mas ele teve um processo inflamatório perilesão e uma grande infecção – na época não se dispunha de antibióticos-, que podem ter contribuído para as manifestações dessas alterações. Mas isso não quer dizer que tenham sido permanentes. Não havia os recursos médicos e tecnológicos de hoje, e entre a primeira e a segunda documentação se passaram 15, 20 anos”, observou Renato Rozental, lembrando que inflamação e infecção podem levar a alterações no padrão da atividade elétrica cerebral. “Ele viajou a outros países se apresentando. E os relatos de quando morou no Chile não descrevem um homem grosseiro. Lá, ele trabalhou como cocheiro. Lidava com cavalos, que são animais sensíveis, e com o transporte de passageiros em charretes. Era tido como uma pessoa educada, sensível e responsável. Eu acredito na autenticidade dos relatos do médico que o examinou no Chile porque os nossos resultados mostram que a compensação [cerebral] em pacientes com lesão frontal unilateral é possível no caso se não houver demanda para cumprir várias tarefas ao mesmo tempo, processo conhecido como “multitarefa”, acrescentou o pesquisador do CDTS/Fiocruz. O nosso estudo contribui para a compreensão do caso de Phineas Gage, considerado um dos grandes mistérios da neurociência”.
Partindo do zero
Não houve autópsia, e o que resta hoje de Gage é o crânio perfurado e a barra de ferro. O lobo frontal é importante para tomada de decisões, planejamento, memória de curto prazo, interação familiar e social - daí pensarem que as lesões seriam responsáveis pela alteração no comportamento. No caso de E.L., a ideia foi partir do zero, sem se deixar influenciar por conclusões passadas. Desde o início, o lobo frontal esquerdo do brasileiro começou a compensar o direito. Rozental explicou que, se o hemisfério saudável “não for ativamente recrutado” para outra atividade, ele pode compensar o lesionado. Em um teste simples feito com E.L., por exemplo, ele precisava tocar rapidamente com o polegar cada dedo da mesma mão, o que fez sem problemas. O mesmo com a outra mão. Mas, quando precisou fazer com ambas ao mesmo tempo (multitarefa), o hemisfério saudável não deu conta de compensar o hemisfério direito.
“O estudo ajuda a compreender a atividade elétrica anormal que surge na área perilesão”, observou Rozental. O estudo abre caminho também para tratamentos no caso de o cérebro não fazer essa compensação. Por meio de medicamentos e mesmo estimulação de ondas cerebrais, é possível levar um hemisfério a compensar as áreas com lesão no outro, desde que as lesões não sejam bilaterais. Na área com lesão, surgem ondas elétricas lentas de alta amplitude. “Se modularmos essa atividade elétrica anormal que surge no hemisfério lesionado, essas ondas lentas, nós conseguimos diminuí-las em frequência e a pessoa consegue ter a sua função executiva normalizada”, explicou o pesquisador da Fiocruz.
Mas era preciso ter certeza sobre esse “espelhamento”. A prova de conceito foi feita por meio da técnica de estimulação magnética transcraniana (TMS, na sigla em inglês): ela “desliga” temporariamente uma área, através da estimulação do córtex cerebral. Se esta área estava controlando a atividade no outro hemisfério e é desligada, diferenças eletrográficas aparecem em registros e a capacidade funcional do paciente é nitidamente alterada e dimensionada. Isso reforça o conceito de que a área saudável estava modulando a lesionada.
“A identificação de respostas compensatórias associadas às ondas lentas oscilatórias sobre o hemisfério lesionado facilita a determinação da extensão que o recrutamento neural na área perilesão representa na reorganização ou engajamento funcional das redes latentes existentes”, diz o artigo publicado na Lancet.
Vida normal
Para analisar as modificações funcionais do córtex pré-frontal, único no ser humano, foi montada uma equipe que, além de brasileiros, incluiu a colaboração de pesquisadores internacionais nos campos de neurociência, neurologia, medicina interna e neuropsicologia, como Rodolfo Llinas (NYU), Michael Bennett (Albert Einstein College of Medicine, NYU), Elkhonon Goldberg (NYU e atual Diretor do Instituto Lúria, NY) e Oliver Sacks até agosto 2015, quando faleceu. Na UFRJ, houve o apoio do Prof. Mário Fiorani e do médico Marcos Martins, especialistas lotados no IBCCF e no HUCFF.
“Essas descobertas significam que um foco no recrutamento do hemisfério intacto para ajudar na recuperação pode ser uma direção valiosa para tratamentos clínicos efetivos que permitirão a recuperação de funções comprometidas e alcançar melhor qualidade de vida para os pacientes”, observou Rozental. “Embora não exista dúvida de que, após a infecção no cérebro, houve mudanças na personalidade de Gage, nosso estudo substancia os relatos de sua recuperação e retomada de algo semelhante a uma ‘vida normal’, impactando significativamente nossa compreensão da plasticidade do cérebro e ajudando médicos com a estruturação de uma estratégia de tratamento”.
E.L., por sua vez, apesar de ter perdido 11,2% do total de sua massa encefálica, leva uma vida basicamente normal. Devido à epilepsia pós-traumática, não pode mais trabalhar em construção civil, mas tem controlado os episódios com medicamentos anticonvulsivantes e realizado outras tarefas. A interação familiar e social também permanece a mesma. Ele tem ainda alguns sintomas brandos, como assimetria sutil de reflexos entre os braços esquerdo e direito. “Não houve declínios perceptíveis em seu processamento mental, raciocínio moral, comportamento social, capacidade de resolver problemas diários, capacidade de interagir com seus colegas de trabalho ou com familiares ou capacidade de agir com eficiência”, diz o artigo.
“Em resumo, nosso estudo sugere que a modulação da dinâmica das ondas de baixa frequência é um importante mecanismo pelo qual o córtex pré-frontal acomoda lesões neurológicas, apoiando relatos da recuperação de Gage e representando um atraente novo alvo para intervenções terapêuticas”, observou Rozental.
Pesquisa
Participaram ainda do estudo Raphael M. Bertani, Caio M. Perret, Pedro C. Rodrigues, Joana Vicentini, Tagore M. Gonzalez de Morais, Gustavo F. Galvão, Fabricio de Mattos, Guilherme L. Werneck (UFRJ), Ruy C. Monteiro e Ivan S. Dorio (Hospital Miguel Couto, RJ), Stefano F.A. Rozental (Vassar College, Poughkeepsie, NY), Fernando A. Vasconcelos (Hospital Miguel Couto, Unirio), Cintya Y. Hayashi e Wellingson S. Paiva (Unesp), Jorge R.L. dos Santos (PUC, RJ), Carla T. Ferreira Tocquer (Centro de Neurologia da Cognição e do Comportamento), Claudia Capitão (Centro Universitário, IBMR), Luiz C. Hygino da Cruz Jr (MRI Clinica de Diagnóstico por Imagem CDPI/DASA), Jaan Tulviste (University of Tartu, Estônia), Kenneth Podell (Neurological Institute, Houston Methodist), Howard J. Federoff (Georgetown University), Divyen H. Patel (Genome Explorations, Memphis, TN), e Fred Lado (Northwell Health, Manhasset, NY).
A pesquisa teve financiamento da Fundação de Amparo Pesquisa Rio de Janeiro (Faperj), Universidade Federal do Rio de Janeiro e Fiocruz/Ministério da Saúde (Inova Fiocruz).