Os casos de violência contra profissionais da imprensa no Brasil registrados desde 1982 pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) estão agora facilmente disponíveis. Inaugurado no dia 30 de novembro passado, um site coordenado por duas professoras da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP traz as datas, locais e tipos de ocorrência, o nome e o gênero das vítimas e dados sobre os agressores.
O site disponibiliza os dados reunidos no Relatório de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, publicado anualmente pela Fenaj. “Esse tipo de informação estava muito descentralizado e o acesso não era prático. Por isso optamos por dinamizar essa base de dados, para auxiliar pesquisadores da área no Brasil e no mundo”, afirma a professora Elizabeth Saad, do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, uma das responsáveis pelo projeto. O site, que está disponível também em inglês, é uma iniciativa do grupo de pesquisa Com+ e do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) – ambos ligados à ECA –, em parceria com a Fenaj.
Os dados mais recentes informados pelo site mostram que a violência contra jornalistas aumentou significativamente durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. Esse tipo de ocorrência subiu de 100 em 2018 – último ano do governo de Michel Temer – para 183 em 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro, e para 302 em 2020. Em 2021, esse número foi de 150, uma queda em relação ao ano anterior, mas ainda assim superior ao registrado antes da posse do atual governo. “Acredito que essa queda se explica pela não notificação”, afirma a professora Elizabeth. “2021 foi o ano do auge da pandemia de covid-19, e a Fenaj teve dificuldade de coletar as denúncias”.
A professora Daniela Oswald Ramos, do Departamento de Comunicações e Artes da ECA – também coordenadora do site –, concorda com Elizabeth, destacando que o crescimento da violência contra jornalistas tem relação com o contexto político do Brasil. Ela lembra que o governo de Jair Bolsonaro atacou jornalistas sistematicamente, tendo o seu nome relacionado a 261 casos de hostilidade aos profissionais de imprensa. Há pelo menos sete registros em que os agressores são identificados como apoiadores de Bolsonaro. “Esses grupos extremistas precisam hostilizar e desqualificar o jornalismo como estratégia de desinformação”, diz Daniela.
Em 2013, também houve aumento de casos de violência contra jornalistas, como mostra o site. Foram 185 casos, um aumento de 112 registros em comparação com o ano anterior. O contexto das agressões eram as chamadas Jornadas de Junho, em que os manifestantes protestavam contra o preço da tarifa do transporte público e criticavam o jornalismo hegemônico, que ignorava os protestos ou os caracterizava como vandalismo. “O momento da mudança foi quando uma repórter da Folha de S.Paulo foi atingida por uma bala de borracha e, a partir disso, passou a denunciar a violência policial”, destaca Daniela. “Também teve o caso em que o jornalista Caco Barcellos e sua equipe foram hostilizados no Largo da Batata (zona oeste de São Paulo) enquanto cobriam as manifestações”.
Outro dado apontado pelo site é a maior incidência de registros de agressão nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro e no Distrito Federal. Para a professora Elizabeth Saad, isso tem relação com a presença nesses locais da mídia hegemônica, que recebe maiores ataques. “Entretanto, não podemos nos esquecer do Brasil profundo, onde famílias poderosas são donas dos veículos de comunicação ou muito influentes. Ali, denunciar é colocar sua vida profissional e sua integridade física em risco”, reforça.
Elizabeth compara a situação com o caso da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. O jornal deu suporte à jornalista na denúncia de agressão de cunho sexual feita pelo presidente da República. “Esse tipo de situação, em que as empresas de comunicação dão suporte ao jornalista agredido, não acontece no Brasil profundo, e ainda algumas agressões partem de pessoas do próprio jornal”. Por isso, a existência de poucos registros de agressão nos demais Estados do Brasil pode ser explicada pelo alto risco para quem faz denúncias e pela falta de apoio aos profissionais.
Em casos de mulheres, a agressão à profissão se mistura com o machismo e a misoginia. “A situação que se observa no Brasil e no mundo é que casos de agressão a jornalistas mulheres são de conotação sexual, como ameaças de estupro e palavras de baixo calão, que estigmatizam a mulher, fruto de um machismo estrutural”, analisa Daniela. Ela também reforça o aumento de agressões desse tipo nos últimos anos, “durante o governo Bolsonaro, que instrumentalizou a violência contra jornalistas mulheres por achar ser um alvo mais fácil, minando assim a credibilidade da instituição que elas representam”. Em 2020, foi registrado o maior pico de agressão ao gênero feminino, sendo 60 casos.
“A guerra veio a nós”, enfatiza Daniela. A frase representa a sensação dos jornalistas cobrindo apurações em campo, em que a agressão é direta e, às vezes, pode levar à morte. Ela explica que, em casos de coberturas de manifestações políticas, o crachá, o colete de imprensa, o microfone e a câmera, em vez de serem só ferramentas profissionais, se transformam em indicativos para alvo de ataque.
“É heroico trabalhar com jornalismo, dar voz ao povo e lutar pela manutenção do Estado democrático. Tem sido uma profissão de risco nos últimos anos, e desvalorizada”, acrescenta Elizabeth. Jornalismo é apurar múltiplas vozes, ser objetivo, buscar informação e trabalhar para o povo. “A prática do jornalismo é um ato de guerrilha”, compara Daniela.
“Temos um papel, como pilares da democracia, de fiscalizar instituições, e quando não temos credibilidade a democracia é colocada em risco, principalmente com a indústria da desinformação que se instalou no Brasil”, conclui Daniela.
O site do grupo de pesquisa Com+ e do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) – ambos ligados à Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – pode ser acessado através deste link.
Fonte: Jornal da USP