Após oito anos em dois mandatos como parlamentar na Câmara dos Deputados, onde ouviu xingamentos, piadas e comentários homofóbicos de colegas e ameaças de morte por defender a causa LGBT, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL) o único gay assumido na Casa, anunciou esta quinta-feira que desiste de assumir o terceiro mandato, que começa no próximo dia 1º de fevereiro, e que vai morar no exterior, onde já está e não quer saber mais de voltar ao Brasil. Para o lugar dele será chamado o primeiro suplente do partido, o vereador carioca David Michael Miranda, o primeiro gay assumido da Câmara de Vereadores do Rio.
Jean alegou que vem recebendo muitas ameaças de morte e que não se sente confortável em andar com seguranças e carro blindado. Teme ter o mesmo fim de sua amiga, a vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), assassinada na noite do dia 14 de março, no Rio, junto com o motorista dela, Anderson Gomes. O crime não foi solucionado até hoje.
Eis o que ele postou na sua página do Facebook:
"Preservar a vida ameaçada é também uma estratégia da luta por dias melhores. Fizemos muito pelo bem comum. E faremos muito mais quando chegar o novo tempo, não importa que façamos por outros meios! Obrigado a todas e todos vocês, de todo coração. Axé!"
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, ele informou que ficou assustado após a morte de Marielle e que a partir de então, as ameaças se intensificaram. "O [ex-presidente do Uruguai] Pepe Mujica, quando soube que eu estava ameaçado de morte, falou para mim: 'Rapaz, se cuide. Os mártires não são heróis'. E é isso: eu não quero me sacrificar", disse Jean Wyllys à "Folha".
Grande opositor do hoje presidente Jair Bolsonaro, quando este era deputado federal, vinha tendo constantes embates com ele nos últimos oito anos. Na votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em abril de 2016, após ser xingado por Bolsonaro, o psolista cuspiu-lhe na cara. A atitude valeu-lhe uma censura escrita pela Comissão de Ética da Câmara dos Deputados. Durante a campanha presidencial, Wyllys prometeu que, caso Bolsonaro fosse eleito, ele sairia do país.
Além da causa LGBT, Jean defendia a causa das minorias, como as religiões de matriz africana, negros e trabalhadores. Entre os projetos de lei apresentados, estão um que permite o aborto nas doze primeiras semanas, tanto no SUS, quanto na rede privada; proibição da redução de velocidade, a suspensão do serviço ou qualquer forma de limitação, total ou parcial, de tráfego de dados de internet fixa, residencial ou empresarial; permite a pessoa mudar seu nome de acordo com o gênero com o qual se identifica e não com o seu sexo de nascimento; entre outros. Ele recebeu 24.295 votos no pleito de outubro.
Nos últimos anos, sofreu muito com "fake news" contra ele, associando-o à pedofilia, ao casamento de adultos com crianças e mudança de sexo de crianças. Uma chegou a dizer que ele apresentara projeto de lei que obrigaria as igrejas Católica e evangélicas a casar casais gays. No ano passado, a 2ª Vara Federal de Osasco deu-lhe ganho de causa em processo que ele moveu contra o deputado federal eleito Alexandre Frota (PSL-SP), por injúria e difamação. Frota foi condenado a dois anos e 26 dias de prisão, que converteu em duas restritivas e multa de R$ 295 mil.
Ele escreveu uma carta ao PSOL. Eis um trecho:
Dirijo-me hoje a vocês, com dor e profundo pesar no coração, para comunicar-lhes que não tomarei posse no cargo de deputado federal para o qual fui eleito no ano passado.
Comuniquei o fato, no início desta semana, ao presidente do nosso partido, Juliano Medeiros, e também ao líder de nossa bancada, deputado Ivan Valente.
Tenho orgulho de compor as fileiras do PSol, ao lado de todas e todos vocês, na luta incansável por um mundo mais justo, igualitário e livre de preconceitos.
Tenho consciência do legado que estou deixando ao partido e ao Brasil, especialmente no que diz respeito às chamadas "pautas identitárias" (na verdade, as reivindicações de minorias sociais, sexuais e étnicas por cidadania plena e estima social) e de vanguarda, que estão contidas nos projetos que apresentei e nas bandeiras que defendo; conto com vocês para darem continuidade a essa luta no Parlamento.
Não deixo o cargo de maneira irrefletida. Foi decisão pensada, ponderada, porém sofrida, difícil. Mas o fato é que eu cheguei ao meu limite. Minha vida está, há muito tempo, pela metade; quebrada, por conta das ameaças de morte e da pesada difamação que sofro desde o primeiro mandato e que se intensificaram nos últimos três anos, notadamente no ano passado. Por conta delas, deixei de fazer as coisas simples e comuns que qualquer um de vocês pode fazer com tranquilidade. Vivo sob escolta há quase um ano. Praticamente só saía de casa para ir a agendas de trabalho e aeroportos. Afinal, como não se sentir constrangido de ir escoltado à praia ou a uma festa? Preferia não ir, me resignando à solidão doméstica. Aos amigos, costumava dizer que estava em cárcere privado ou prisão domiciliar sem ter cometido nenhum crime.
Todo esse horror também afetou muito a minha família, de quem sou arrimo. As ameaças se estenderam também a meus irmãos, irmãs e à minha mãe. E não posso nem devo mantê-los em situação de risco; da mesma forma, tenho obrigação de preservar minha vida.
Rodrigo Maia diz que ninguém pode ameaçar deputado e se sentir impune
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), divulgou nota esta quinta-feira, lamentando a decisão de Wyllys:
"Lamento a decisão tomada pelo deputado Jean Wyllys. Como presidente da Casa, e seu colega na Câmara, mesmo estando em posições divergentes no campo das ideias, reconheço a importância do seu mandato. Nenhum parlamentar pode se sentir ameaçado, ninguém pode ameaçar um deputado federal e sentir-se impune"
Jean Wyllys recebeu 24.295 votos na última eleição, em outubro.
O PSOL, colegas de bancada e artistas lamentaram a decisão de Wyllys.
"O Brasil perde muito sem Jean Wyllys exercendo o mandato que recebeu da população fluminense. Ele defende como ninguém causas libertárias, é absolutamente ético e verdadeiro nas suas convicções. Parlamentar raro, portanto.Foi por exercer um mandato com ideias e causas que Jean sofre absurda pressão dos obscurantistas, sendo alvo de preconceito, mentiras e ameaças de morte. Só ele próprio sabe como isso é pesado. Respeito sua decisão e garanto que nossa luta vai restaurar um tempo de delicadeza", disse o deputado federal Chico Alencar (PSOL).
"Jean Wyllys é um dos melhores parlamentares que este país já teve. Eu tenho profundo carinho, admiração e respeito por ele, sua história e suas lutas. A decisão de deixar o Brasil é sintoma dos tempos sombrios que vivemos, em que o ódio e a violência ganham o centro da política. Sei que Jean continuará a sua militância. E nós daremos continuidade às suas lutas no parlamento. Obrigado por tudo, meu amigo. Seguiremos juntos na busca por dias melhores", disse o deputado estadual e federal eleito, Marcelo Freixo (PSOL).
"A decisão de Jean Wyllys expressa a deterioração da democracia brasileira. É muito grave que um deputado não se sinta seguro para exercer o mandato por ameaças à sua vida. As pautas de Jean continuarão sendo as nossas pautas. O PSOL seguirá na luta em defesa da comunidade LGBT, dos direitos humanos, da democracia, da tolerância religiosa e dos povos de terreiro. Toda a nossa solidariedade, Jean. Amanhã há de ser outro dia, e continuaremos na batalha por um outro mundo possível. Acima de tudo, te queremos bem. A luta continua. Obrigado por tudo, Jean!", escreveu o PSOL Nacional, em nota.
Artistas também escreveram na página do Facebook de Wyllys: "Obrigada pela sua coragem, força, e por nos defender do retrocesso. Vai na fé. Não vale a pena morrer por tanta ignorância. O importante é estar vivo!", disse a atriz Guida Vianna. "Que você possa voltar logo!", escreveu a cineasta Tata Amaral. "Chocada Jean. Mas, te prefiro vivo, pensante e ativo que ameaçado neste redemoinho de ignorância que impera nesse sistema", escreveu a atriz Débora Olivieri. "Jean Wyllys, força sempre", postou o músico Tico Santa Cruz.