Segundo relatos, as tentativas de remover a Favela do Lixão foram se tornando mais presentes a partir de 2013. Contudo, a grande angústia começou em 1 de outubro de 2020. De acordo com moradores, o Subsecretário Municipal de Urbanismo e Habitação, Rafael Quaresma, chegou à comunidade com funcionários da prefeitura e policiais militares para iniciar a demolição das moradias. Eles entraram por um dos acessos do Lixão, na Avenida Governador Leonel de Moura Brizola, e utilizaram uma retroescavadeira.
Dois meses depois, na noite de Natal de 2020, a cidade foi atingida por fortes chuvas. Cinco bairros, Santa Cruz da Serra, Xerém, Parada Morabi, Morabi 2 e Imbariê, ficaram debaixo d’água. O fenômeno climático apresentou índices pluviométricos assustadores, embora ocorressem com pouca densidade no centro de Duque de Caxias. Pouco mais de duas semanas depois, em 14 de janeiro de 2021, 58 famílias foram pegas de surpresa com um aviso de despejo enviado pela prefeitura de Caxias. Moradores relataram que autoridades municipais foram às suas casas ordenando que todos deveriam deixar seus lares, de modo a reduzir os impactos das enchentes na região.
Indenizações Injustas e Especulação Imobiliária
Entre uma demolição e outra, que já derrubou, até o momento, cerca de 150 moradias, há diversos contratempos e acordos provisórios protagonizados pela prefeitura. Isso gera uma situação de insegurança e tensão no local. No início do processo que a prefeitura de Duque de Caxias chama de “desfavelização”, o município chegou a oferecer apenas três meses de aluguel social aos moradores, com parcelas no valor de meio salário mínimo (R$ 660) cada. A duração do benefício foi estendida pelo tempo que durar a obra, graças à intervenção da Defensoria Pública, que considerou a negociação inconstitucional do jeito que estava sendo feita pelo governo de Caxias.
A Favela do Lixão fica bem próxima a um importante centro comercial da cidade, o Calçadão de Caxias, de um hipermercado e de uma rodoviária intermunicipal. Segundo o site da Secretaria Municipal de Urbanismo e Habitação (SHU), o objetivo é oferecer “um novo projeto de habitação, com moradias dignas e a garantia de acesso a serviços públicos essenciais à população”, como a construção de uma creche, uma escola, uma área de lazer, além de uma unidade básica de saúde. Porém, é visível que a localização da favela é ótima para o capital imobiliário.
O poder público local afirma que a Favela do Lixão é uma invasão, já que toda a região supostamente pertenceria à Marinha do Brasil. Isso vem sendo usado como justificativa para as desapropriações a toque de caixa. Entretanto, gestões municipais anteriores, nos últimos 40 anos, não impediram que os moradores estruturassem o local. A decisão de retirar os moradores é vista como hipocrisia. Rose Silva, uma líder comunitária da região, afirma:
“Isso aqui há 40 anos era tudo brejo! [Fomos] nós que aterramos tudo. Depois, [gestões da prefeitura] colocaram asfalto, poste e luz. Tem uma escola municipal aqui! Como é que depois desse tempo todo, a prefeitura tem coragem de dizer que isso aqui é uma invasão?” — Rose Silva
Nesta primeira etapa, ainda segundo o site da SHU, está sendo realizado o cadastramento e a transferência de 800 famílias. São oferecidas três opções. A primeira é uma permuta em que a família troca o seu imóvel por um apartamento no futuro conjunto que será construído no local. Enquanto o condomínio não fica pronto, os familiares receberão um aluguel social para residir temporariamente em outro ponto. A segunda opção é o pagamento do valor avaliado pelas edificações e demais benfeitorias que os moradores construíram e ocupam. A terceira opção é a chamada compra assistida: o morador da comunidade encontra um imóvel que esteja à venda, com caraterísticas semelhantes ao que ele ocupa. A prefeitura compra esse imóvel e o oferece, em permuta, ao morador pela residência em que ele vive.
Isso dito, a cada uma dessas etapas, há conflito de interesses e desinformação. No caso da segunda, por exemplo, o problema está na desproporcionalidade do valor ofertado e o perímetro das edificações e benfeitorias. Além disso, alguns estão aceitando se deslocar para localidades muito distantes, em outros distritos de Duque de Caxias, como Santa Cruz da Serra ou Imbariê, de acordo com o relato da ativista e moradora Gláucia Quirino.
“Aqui na favela, não tem só moradia miserável, não! A prefeitura quer pagar o mesmo valor para casas que são um pouco melhores, que têm parede ou piso revestido de porcelanato, por exemplo, que é um material mais caro, ou que têm blindex de vidro, ou que tenham dois ou mais andares. São casas que, às vezes, têm 100m2, mas só querem dar R$800 por metro quadrado como indenização, quando o valor da casa, na verdade, pode chegar a R$100.000. Os fiscais da prefeitura afirmam que, depois que os moradores souberam dos preços, estão aumentando o tamanho das residências para ver se faturam mais. Além disso, os apartamentos que eles querem oferecer pra gente morar aqui são de 42m2. Eu moro numa casa que tem o dobro do tamanho. Tudo isso é um absurdo.” — Gláucia Quirino
Outro exemplo da insegurança patrimonial que paira sobre os moradores do Lixão, em função dos desmandos da prefeitura de Duque de Caxias, é vivenciado cotidianamente pela costureira Maria Neide. Ela também fez parte da primeira geração que fundou e ergueu a favela, há mais de 40 anos. A casa onde ela mora agora dispõe de um segundo andar, recém-construído após anos de labuta. Entretanto, os fiscais da prefeitura interpretaram que a obra foi concluída às pressas para que a moradia tivesse um reajuste maior no valor da indenização. Segundo seus cálculos, a casa deveria ser avaliada em R$150.000, mas a prefeitura quer fechar a compra por R$52.000. Ela também foi coagida a se mudar para o bairro Santa Cruz da Serra, mas afirmou que, como sua mãe é idosa e está doente, precisando de sua ajuda, e também mora no Lixão, ela não se sentiria confortável de sair de sua comunidade para morar tão longe.
“Eu paguei com muito suor cada tijolo daqui. Tudo era mangue. Eu não posso sair daqui porque eu tenho uma mãe que já tá com 91 anos e preciso estar com ela dois dias na semana pra cuidar dela, dar os remédios. Morar longe daqui só vai me dificultar a vida.” — Maria Neide
Nem o comércio local, que funciona no entorno da favela, escapou das investidas da prefeitura. Diego Tomás Fortes tem uma pequena loja de material de construção na Rua Piratini, que contorna a comunidade. Ele diz que o valor oferecido pela prefeitura não chega nem perto do que ele gastou ao comprar o imóvel há um tempo. Nenhuma reunião com o secretário de obras foi realizada. Ele afirma que teve uma conversa com um “representante da prefeitura”, há cerca de um mês. Segundo o comerciante, ele já foi “decretando os valores”, que estão sendo oferecidos para todos os comerciantes. Ninguém aceitou, por serem valores injustos.
“Eu paguei R$120.000 pela loja, construindo ela do zero. Mas a prefeitura quer arrendar por menos da metade, em torno de R$50.000. Isso é completamente desrespeitoso com a gente. Eles criaram esses valores baseado numa tabela que só eles têm.” — Diego Tomás Fortes
Segundo o portal Pacto RJ, uma espécie de versão estadual do Portal da Transparência, onde estão disponibilizadas as informações de todas as etapas da construção, serão erguidas na Favela do Lixão 423 unidades habitacionais e 12 unidades comerciais, ao custo de quase R$62 milhões. Os serviços compreendem canteiro de obras, movimento de terra, transporte, galerias, drenos e conexões, fundações, estrutura, alvenarias, etc. Às margens do Canal Caboclo, serão canalizados 2.260 metros, no trecho da Linha Vermelha até o bairro Trezentos, na divisa com São João de Meriti.
Os moradores temem que o que está acontecendo na Favela do Lixão é a gentrificação, termo que designa o processo de segregação vivenciado em áreas urbanas, caracterizado pela valorização acentuada de determinada área, que culmina na saída de moradores antigos em razão do aumento local do custo de vida. Isso geralmente ocorre quando investidores, desenvolvedores e moradores mais ricos começam a se interessar por áreas antes negligenciadas pelo poder público e ocupadas por setores populares.
À medida em que esses investimentos aumentam, ocorrem melhorias na infraestrutura, nos serviços e no comércio, e a área passa a ser considerada mais atraente e, assim, os preços dos imóveis e dos aluguéis aumentam. A ideia é vendida como revitalização de áreas degradadas trazendo melhorias na infraestrutura, no saneamento básico, na segurança e no acesso a serviços públicos, além de valorizar o patrimônio imobiliário local. No entanto, essa transformação leva ao deslocamento das populações de baixa renda, que já viviam nessas áreas, que deveriam ser os beneficiários de qualquer investimento no local, devido ao aumento dos preços. Muitas vezes, essas comunidades são forçadas a se deslocar para regiões mais afastadas da cidade, com menos infraestrutura, resultando em perda de vínculos sociais e dificuldades de acesso a serviços básicos.
Um exemplo deste fenômeno acontece na Região Portuária do Rio de Janeiro que, sob a justificativa da realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, passou por um amplo processo de revitalização que mudou a cara da região. O Porto Maravilha, como foi nomeado o projeto, é a maior parceria público-privada da história do Brasil, com custo de mais de R$ 8 bilhões. O que se viu foi um projeto de interesse público sofrendo pressões do mercado imobiliário, além de diversas promessas de contrapartidas sociais que nunca saíram do papel.
Se nada for feito, o risco é grande deste ser o destino da Favela do Lixão. Falta a prefeitura de Duque de Caxias ouvir os moradores e suas demandas para o território, sem ameaças ou imposições. O município terá que fazer uma escolha entre dois projetos de cidade: um que garante aos moradores a tão prometida dignidade e infraestrutura, e outro que pode elitizar e embranquecer a região, através de uma mudança demográfica do perfil dos moradores do território.