Jovem de baixa escolaridade, não branco e flagrado com pequenas quantidades de drogas. Esse é o perfil de pessoas processadas em ações criminais por tráfico de drogas identificado em pesquisa lançada nesta sexta-feira. O estudo foi realizado pela Senad, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e pelo Ipea, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Para o levantamento, foram analisados mais de cinco mil processos por tráfico de drogas sentenciados em 2019, no âmbito dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça Estaduais.
De acordo com a secretária da Senad, Marta Machado, a quantidade de drogas apreendida é muito diferente nas duas esferas judiciais. Enquanto na Justiça federal, a media é de 14 quilos e meio de Cannabis e 6 quilos e seiscentos gramas de cocaína, na Justiça estadual é de 85 gramas de Cannabis e 25 gramas de cocaína. Para o secretário de Acesso à Justiça, Marivaldo Pereira, o levantamento mostra que existe perfilamento racial na aplicação da Lei de Drogas.
Sobre o local da abordagem documentado na pesquisa, metade dos flagrantes ocorreu em via pública, enquanto em cerca de 33% os acusados foram surpreendidos em sua própria residência e 13% na casa de outra pessoa. Cerca de 41% dos réus foi alvo de busca domiciliar sem mandado de justiça.
Entres os objetos apreendidos com os réus processados estão dinheiro e celular, em mais da metade das ocorrências, e balança, em 20%. Armas e munições aparecem em menos de 20% dos processos.
A maior parte das abordagens ou flagrantes ficou a cargo de policiais militares, 76%, e policiais civis, 19%. De acordo com o relato de policiais, a motivação para abordagem foi ‘comportamento suspeito’ feito durante patrulhamento ou denúncia anônima.
O estudo é divulgado em um momento em que o Supremo Tribunal Federal realiza julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha para consumo próprio.
Até o momento, o placar está em cinco a um pela inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo próprio. Pedido de vista feito pelo ministro André Mendonça suspendeu julgamento no fim do mês passado.
Ouça no podcast do Eu, Rio! a reportagem da Rádio Nacional sobre o relatório do Governo Federal constatando viés racial nos processos por tráfico de drogas no Brasil.
A pesquisa, de abrangência inédita, foi lançada em conjunto pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senad/MJSP) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na sexta-feira (22). O material traz vasto panorama sobre a condução processual dos órgãos de Justiça criminal, desde a fase policial até o sentenciamento, contendo dados sobre réus, testemunhas, provas, procedimentos policiais, trâmites implicados na defesa e na acusação, bem como condicionantes para a decisão judicial em primeira instância.
A pesquisa cobre mais de cinco mil autos processuais por tráfico de drogas sentenciados em 2019, no âmbito dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça estaduais, a partir de dados presentes na base de processos penais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os resultados mostram, por exemplo, que 30% dos réus processados por tráfico alegaram que a droga apreendida se destinava ao uso pessoal. Além disso, 49% dos réus afirmaram ser usuários ou sofrer com dependência de drogas.
Jovens de 18 a 30 anos, com ensino fundamental e não brancos formam maioria dos réus
Inúmeros dados contidos no relatório também permitem uma análise empírica da aplicação da Lei de Drogas brasileira (Lei 11.343/2006). Um dos exemplos mais relevantes demonstra elementos já apontados pela literatura produzida sobre o perfil majoritário de réus por crimes previstos nesta lei: jovem, de baixa escolaridade, não branco e que, quando houve flagrante de porte de drogas ilícitas, tinha quantidades relativamente pequenas. Entre os processos em que foi possível captar tais informações nos tribunais federais e estaduais, o perfil era, respectivamente: jovens de até 30 anos (42,5% e 73,6%), que cursaram no máximo o ensino fundamental (28,3% e 68,4%) e não brancos (68,1% e 68,7%).
A secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, Marta Machado, destaca que o estudo, além de ser útil para subsidiar a construção e o monitoramento de políticas públicas, também “poderá incentivar o diálogo da Senad com os atores do sistema de Justiça e com as forças de segurança pública, contribuindo com o aperfeiçoamento da aplicação da lei”.
“Um dos dados mais relevantes é o que evidencia o incontestável quadro de racismo institucional no sistema de Justiça criminal, reforçando a necessidade premente de ações que incidam sobre os vieses raciais dos agentes de segurança pública e do sistema de Justiça”, enfatiza Marta. Para ela, o diagnóstico fortalece o compromisso da Senad “em conduzir a política sobre drogas tendo como pressupostos a promoção de justiça racial, a garantia dos direitos humanos e a proteção aos grupos vulneráveis mais impactados pelos efeitos discriminatórios resultantes desta política de Estado”.
Apreensão de armas e munições figura em só 20% das abordagens e flagrantes
O local da abordagem também foi documentado na análise. Metade dos flagrantes ocorreu em via pública, praça ou parque (50,6%), enquanto em 32,9% dos casos os acusados foram surpreendidos em sua própria residência e 13,6% na casa de outras pessoas. Entre os objetos apreendidos com os réus processados estão dinheiro (59,4%), celular (52,2%) e balança (20,4%). Armas e munições aparecem em menos de 20% dos processos. Apesar do alto percentual de telefones celulares apreendidos, em apenas 5% dos casos houve laudo pericial ou quebra de sigilo telefônico nesses aparelhos.
A maior parte das abordagens ou flagrantes ficou a cargo das forças de segurança pública das Unidades Federativas: policiais militares (76,8%) e policiais civis (19,1%). E aproximadamente 86% dessas abordagens foram realizadas por até três profissionais de segurança pública. De acordo com o relato de policiais, a motivação para a abordagem foi o “comportamento suspeito” feito durante o patrulhamento (32,5%) ou denúncia anônima (30,9%, sendo esta raramente documentada no processo).
Outro dado surpreendente é o alto percentual de entradas em domicílio (49%), das quais apenas uma pequena parcela (15%) com mandado judicial. Ou seja, cerca de 41% dos réus foi alvo de busca domiciliar sem mandado de justiça. Nesse sentido, uma das ações da atual gestão da Senad é a construção de protocolos e formações para garantir a legalidade das abordagens policiais e evitar a produção de processos judiciais anuláveis.
Apenas um em cada seis inquéritos levados a cabo refletem investigações anteriores
Sobre a participação de órgãos especializados, 20% dos processos individuais foram conduzidos nas etapas processuais por estrutura especializada na repressão ao tráfico de drogas e ao crime organizado. As organizações que mais contavam com esse tipo de aparato eram os tribunais, por meio de varas especializadas (73,7%), seguidos pelas polícias civis (28,3%). O relatório mostra que 85% dos réus possuíam auto de prisão em flagrante juntado aos autos.
Para a pesquisadora do Ipea Milena Soares, uma das coordenadoras do relatório, a expectativa é que “os achados contribuam para repensar métricas de produtividade das polícias – a exemplo de metas em número de prisões em flagrante”. A análise mostra que são raros os processos centrados em trabalho de investigação policial: apenas 16% dos inquéritos policiais estiveram relacionados a investigações anteriores. No que diz respeito à aplicação da lei penal de drogas, ela acredita que seja necessária “mudança no foco de policiamento ostensivo para trabalho de investigação policial, maior rigor do judiciário na convalidação de entradas em domicílio sem mandado e critérios objetivos de quantidade de cannabis e cocaína, para a presunção de porte para uso próprio”, argumenta.
Acesse o conteúdo dos relatórios na íntegra aqui e aqui.
Fonte: Ministério da Justiça e Radioagência Nacional