“Pai, por que os policiais só abordam pessoas da minha cor”? Perguntas como essa sempre fizeram parte do cotidiano do pediatra Cláudio Fernando Rodrigues Soriano, 61 anos. O médico alagoano conta que desde a chegada do segundo filho, Marcus Vinicius, ele e a esposa, a ginecologista Eurides Maux de Carvalho, 61 anos, que é branca, passaram a vivenciar como pais as experiências que só quem é preto sente na pele.
Com a primeira filha, Maria Isabel, que foi também adotada, mas é parda como o pai, não se depararam com manifestações de racismo que, após a adoção do filho passaram a acontecer. “Quando ele era pequeno, uma vendedora perguntou à minha esposa se o Marcus Vinícius, que já havia chamado ela de mãe no local, era filho dela. Ela não disse nada”, relata. Quem respondeu foi a criança: disse que a mãe não gostava da pergunta.
Certa vez, um porteiro novo chegou a chamar a polícia, sem qualquer motivo, dizendo que Marcus Vinícius, hoje com 18 anos, era um “delinquente”. Quando se apaixonou por uma menina branca da classe, o rapaz recebeu ofensas da mãe dela, que chegou a enviar a filha para outra cidade, com o intuito de separar o casal de namorados. Ambos os casos, que acabaram resultando em pedidos de desculpas, são situações frequentes na vida de quem é pai ou mãe adotivo inter-racial.
As crianças pretas ou pardas constituem a maioria (69,6%) das 4.508 disponíveis hoje para adoção no Brasil, conforme dados do painel de acompanhamento do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). A proporção é superior à da própria população negra do país que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), encontra-se em 56,1%. A discrepância entre os indicadores evidencia a maior vulnerabilidade das crianças negras.
De acordo com o juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Edinaldo César Santos Junior, estudos em Harvard noticiam que, atrás da pobreza, a raça aparece como o segundo aspecto de maior peso entre os fatores de risco ao não desenvolvimento integral na primeira infância. “Se a criança é pobre e negra, estará diante de uma vulnerabilidade acrescida, então é fundamental atuarmos de maneira a melhorar as oportunidades de saúde, educação e inclusão social dessas crianças”, afirma o juiz, que é gestor do Pacto Nacional pela Primeira Infância.
Por este motivo, a adoção inter-racial é uma das questões abordadas dentro do projeto “Diversidade das Primeiras Infâncias”. A iniciativa, lançada por ocasião dos quatro anos do Pacto, em setembro passado, incorpora uma linha de ação prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, desde 2009, que busca o estímulo à adoção inter-racial, visando a preparar as equipes interprofissionais e a magistratura para bem exercerem a aplicação dessa medida.
Das 18.530 crianças adotadas a partir de 2019, 52,1% são pretas ou pardas. “É da lei a vontade de que os pretendentes possam se preparar para adotar as crianças e adolescentes que estão privados da convivência familiar, que em sua maioria são as crianças e adolescentes negros. Entretanto, os dados do SNA demonstram que há, na verdade, uma preferência na adoção por crianças brancas, de 0 a 3 anos, e meninas”, diz Edinaldo. “Então, embora haja um grande número de pessoas pretendentes à adoção e um número muito menor de crianças para serem adotadas, a espera dessas crianças por famílias se mantém em razão do perfil irreal sonhado pelos pretendentes”, explica.
Outra preocupação dentro do Pacto, acrescentou o magistrado, é com a infância encarcerada. “A Constituição Federal veda a extensão da pena para além da pessoa apenada. Assim, as crianças que nascem no cárcere ou em unidades socioeducativas não podem ter seus direitos violados. É preciso ter uma visão ampliada do que é a primeira infância, que inclui um olhar para os pais, as mães, a família e tudo o que possa significar violações que afetam o direito dos infantes ao desenvolvimento”, destaca.
Em relação às mulheres encarceradas, enquanto foram identificadas 8.150.186 brancas no CadÚnico (28,6%), o universo de não brancas era de 20.372.531 (61,23%), o que configura mais do que o dobro. As estatísticas integram a pesquisa realizada pelo CNJ, em parceria com o PNUD, intitulada: “Diagnóstico Nacional da Primeira Infância – Mulheres presas e adolescentes em regime de Internação que estejam grávidas e/ou que sejam mães de crianças até 6 anos de idade”, lançada em 2022.
Em comparação com a população feminina brasileira total, os últimos dados divulgados pelo IBGE demonstram que 50,94% eram negras e 47,50% brancas. Isso significa que tanto para as mulheres encarceradas e não encarceradas inscritas no CadÚnico há uma maior concentração de negras e uma menor concentração de brancas.
De acordo com o estudo, a contraposição desses dados deixa clara a desvantagem socioeconômica das mulheres negras no país, um legado da escravidão, que o juiz auxiliar da Presidência do CNJ atribui às “escolhas equivocadas” feitas pelo estado brasileiro.
A Lei n. 601 de 1850, conhecida como Lei de Terras, praticamente tornou impossível a posse da terra às pessoas negras, que só podiam ser conquistadas por meio da compra. Outra lei restritiva de direitos foi a que trouxe o primeiro regramento da educação no país, em 1837, que estipulou que negros, ainda que fossem livres ou libertos, e pessoas com doenças contagiosas não podiam frequentar escolas públicas: “Foram essas, entre outras circunstâncias, que acabaram nos colocando nesse lugar que estamos hoje. As nossas escolhas enquanto sociedade e enquanto estado”, conclui o magistrado.
O caminho para a necessária mudança cultural está privilegiadamente na primeira infância. De acordo com o juiz Edinaldo, estudos dizem que, no nascimento, os bebês olham igualmente para os rostos de todas as raças e, aos três meses, olham mais para os rostos que correspondem às raças dos seus cuidadores. Já aos dois anos e meio, a maioria das crianças usa a raça para escolher os colegas que vão brincar com elas. “Aos quatro anos, expressões de preconceito racial começam a atingir essas crianças e, quando chegam aos cinco anos de idade, as crianças já demonstram as mesmas atitudes raciais praticadas por adultos”, ensina.
Neste momento, culturalmente, as crianças aprendem a associar alguns grupos com status mais alto do que outros. “Estamos diante do racismo estrutural. As crianças começam a perceber, e normalizam, que pessoas de determinada raça são aquelas que sempre estão ocupando espaços subalternizados, enquanto outras estão sempre em espaços de liderança ou de poder. Não é sequer preciso explicitar qual raça ocupa qual espaço social majoritariamente”.
As conversas explícitas entre as crianças acerca da amizade inter-racial têm início entre os 5 e os 7 anos. É aí que se encontra a chave para a mudança cultural, diz o magistrado: “As pesquisas demonstram que o diálogo com crianças na primeira infância pode melhorar drasticamente suas atitudes raciais em menos de uma semana. Com um adulto, a possibilidade de mudança é imprevisível, diante do preconceito arraigado. Por isso, a primeira infância é essa janela importante de oportunidade para as transformações por uma sociedade não racista e capaz de valorizar as diferenças”.