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Justiça proíbe Forças Armadas de celebrar o golpe de 1964 e usar verba pública para isso

Juíza acolhe pedido da Defensoria Pública da União e veda comemorações do 31 de março de 1964 em instalações militares

Por Cezar Faccioli em 29/03/2019 às 22:45:24

Foto: Agência Brasil/Tânia Rêgo

A União está proibida de comemorar o golpe de 64, e deve se abster da Ordem do Dia alusiva ao 31 de março de 1964, prevista pelo ministro da Defesa e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronática. A decisão da juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília. A tutela de urgência, que assegura a vigência imediata da proibição, atende a pedido da Defensoria Pública da União. O porta-voz da Presidência da República, general Rego Barros, limitou-se a registrar que o Governo manifestou-se sobre o tema ao longo da semana, e não faria novas declarações. Com isso, até a noite de sexta-feira (29), dois dias antes da data prevista para as celebrações, não houve anúncio de uma disposição do Planalto ou do Ministério da Defesa de recorrer da sentença, que adverte contra o uso de recursos públicos na comemoração e oficia a pasta da Defesa e o Ministério Público para ciência e providências.

A juíza abre a sentença com a descrição do pedido de tutela de urgência em ação civil pública proposta pela Defensoria, em face da União (representadas no caso pelas Forças Armadas). Pelo texto do pedido, a União deve se abster de "levar a efeito qualquer evento em comemoração a implantação da ditadura no Brasil (Golpe de 1964), proibindo especialmente o dispêndio de recursos públicos para esse fim, sob pena de multa a ser fixada ao prudente arbítrio de Vossa Excelência, bem como caracterização de ato de improbidade administrativa".

Esse ato, legalmente, é uma das bases para a caracterização do crime de responsabilidade, e daí para o impeachment, de acordo com nota da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, que também ingressou em juízo contra a Ordem do Dia e as comemorações.

Ainda segundo a sentença da juíza, a narrativa da petição inicial lembra que o porta-voz oficial da Presidência da República afirmou na segunda-feira (25/03/2019) que o Presidente da República determinou ao Ministério da Defesa que faça as 'comemorações devidas' pelos 55 anos da tomada de poder pelos militares, com aprovação de mensagem  devidas a ser lida em quartéis e guarnições militares em referência a 31 de março de 1964. Na petição, a DPU acrescenta que a mencionada declaração foi noticiada por diversos veículos de comunicação, inclusive por entrevista televisionada do porta-voz da Presidência da República, com alta repercussão nacional e internacional.

A petição da DPU, sempre de cordo com o resumo da juíza, assevera serem de conhecimento público os horrores relacionados ao período ditatorial, ocorrido no Brasil entre 1964 a 1985. O documento destaca os relatórios da Comissão da Verdade do Brasil (2012 a 2014), em que foram ouvidas vítimas da ditadura, familiares de pessoas que desaparecidas ou mortas no período, comitês de memória, entidades de direitos, entre outras organizações, a respeito das violações aos direitos humanos do regime militar.

Por último, mas não por fim, a petição da DPU sustenta que o ato impugnado (a Ordem do Dia a ser lida nas comemorações) contraria os princípios insculpidos no art. 37 caput da Constituição da República de 1988. Em especial o da legalidade, por infringir o disposto na Lei nº 12.345/2010, segundo a qual a instituição de datas comemorativas que vigorem em todo território nacional devem ser objeto de projeto de lei.
 
Celebração é incompatível com a reconstrução democrática promovida pela Constituição de 1988, sustenta a sentença

No essencial, a sentença defere o pedido de tutela de urgência em termos que acolhem e ampliam a argumentação da DPU: "O ato administrativo impugnado, não é compatível com o processo de reconstrução democrática promovida pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e pela Constituição Federal de 1988; afasta-se do ideário de reconciliação da sociedade, da qual é expressão a concessão de anistia e o julgamento de improcedência da ADPF 153. Nesse veredito, o Supremo Tribunal Federal recusou pedido de revisão da Lei nº 6.683/1979, mantendo ampla e irrestrita anistia aos crimes comuns, de qualquer natureza, quando conexos com crimes políticos ou praticados por motivação política.

"Nesse contexto", segue a  sentença da juíza Luz, sobressai "o direito fundamental à memória e à verdade, na sua acepção difusa, com vistas a não repetição de violações contra a integridade da humanidade, preservando a geração presente e as futuras do retrocesso a Estados de exceção. Esse é o mote, inclusive, ressalta a juíza, da sentença deflagrada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no "Caso Herzog e outros", reproduzida ao Id Num. 43099478. Registre-se que o Brasil acatou a sentença da referida Corte Internacional, instituindo grupo de trabalho para seu devido atendimento, por meio da Portaria nº 281, de 30/07/2018, do Ministério dos Direitos Humanos. Nesse ponto, ressalte-se que a alusão comemorativa ao 31 de março de 1964 contraria, também, a ordem de manter a educação contínua em direitos humanos, como instrumento de garantia de não repetição, estabelecida em sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no "Caso Gomes Lund e Outros" (cf. Id Num. 43099480 - Pág. 115).

Não bastasse o conflito com o espírito democrático da Carta de 1988,  o ato impugnado contraria, ainda, o princípio da legalidade previsto no art. 37 da Constituição Federal. Isso porque a Lei nº 12.345/2010 estabelece que a proposição de data comemorativa será objeto de projeto de lei (art. 4º), acompanhado de comprovação da realização de consultas ou audiências públicas (art. 2º), segundo critério de alta significação para os diferentes segmentos que compõem a sociedade brasileira (art. 1º). Desse modo, a Administração Pública, jungida ao princípio da legalidade, não deve estabelecer celebração de data sem a previsão expressa em Lei, previamente debatida e aprovada pelo Congresso Nacional.

Por fim, após anos de embates políticos-ideológicos de resistência democrática e reconquista do Estado de direito, culminados na promulgação da Constituição Federal de 1998, espera-se concórdia, serenidade e equilíbrio das instituições, cujos esforços devem estar inclinados à superação dos grandes desafios da nação, para realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: 
I construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos.

A juíza Ivani da Silva Luz reproduz integralmente o texto da Ordem do Dia proposta pelo Ministério da Defesa e acolhida pela Presidência da República para leitura em instalações militares de todo o País. Destaca o trecho em que a Ordem trata a derrubada do presidente João Goulart como um restabelecimento da ordem democrática e uma afirmação da Constituição então vigente, promulgada em 1946. Além disso, ressalta que o período ainda está sob intensa revisão histórica, com muitos pontos de vista conflitantes sobre suas causas e consequências: 

"O movimento político-militar de 1964, incluindo seus desdobramentos históricos, é objeto de inúmeros questionamentos com o fim de explicá-lo, justificá-lo ou desaprová-lo, incluindo estudos, análises, artigos, teses, livros, memórias, depoimentos, entre outros, seja de natureza científica, jornalística, memorialística, política ou ideológica . É peremptória, a sentença, ao destacar que o comando das Forças Armadas optaram por comemorar a data sem admitir a oportunidade de uma revisão profunda.

A Ordem do Dia do Ministério da Defesa em alusão ao 31 de março de 1964 apresenta-se, contudo, como celebração à ruptura política deflagrada pelas Forças Armadas, ao "reconhecer o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os " e ao aduzir que o dia fatídico traduziria um episódio simbólico da sua identificação com a população, "dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15."

Em contraponto, a juíza sustenta que "o reconhecimento do caráter autoritário do regime sucedido pela Constituição Federal de 1988 pode ser observado, inclusive, no art. 8º dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, o qual concedeu anistia aos que "foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares." A juíza ampara sua decisão em sentença do Supremo sobre a natureza impositiva das Disposições Transitórias, que de acordo com o decano do Supremo, ministro Celso de Mello, tem a mesma força dos demais artigos inscritos na Carta Magna.

O referido ato administrativo desobedece ao princípio da prevalência dos direitos humanos previsto no art. 4º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, no qual, segundo a lição de Celso Lafer, existe " clara nota identificadora da passagem do regime autoritário para o Estado Democrático de Direito", de sorte que "este princípio afirma uma visão do mundo - que permeia a Constituição de 1988 - na qual o exercício do poder não pode se limitar à perspectiva dos governantes, mas deve incorporar a perspectiva de cidadania".

Comemoração, para a sentença, deve ser da Carta de 1988, que afirmou 'ódio e nojo à ditadura'

"O compromisso com os valores democráticos para restabelecimento do Estado de direito e superação do Estado de exceção antes vigente, está canalizado pelo discurso do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, na promulgação da Constituição Federal de 1988, esta, sim, a ser celebrada diuturnamente pelos cidadãos brasileiros, suas instituições e as autoridades que os servem," de acordo com a sentença da juíza. IvaniSilva da Luz classifica de memorável o discurso do presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado federal e presidente do PMDB e da Câmara à época, Ulysses Guimarães:
"Senhoras e senhores constituintes.

Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse  como presidente da Assembleia Nacional Constituinte.

Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. (Aplausos). A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
(...)
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mão de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.

Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável. Ela própria com humildade e realismo admite ser emendada dentro de cindo anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas. Rebelada a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.

O Estado encarnado na metrópole resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes desobedecer a El Rei Vieira que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: para servir El Rei. O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.

A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. (Aplausos acalorados) Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil."
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