Mesmo com dados alarmantes sobre estupros no Brasil, as vítimas ainda sofrem traumas para prestarem queixas do crime e sofrem com a burocracia para exercer o direito ao aborto legal. A proposta de lei PL 1.904 de 2024 intensifica a preocupação, ao classificar o aborto após as 22 semanas de gestação como homicídio simples, com penas que variam de 6 a 20 anos de prisão. Em contraste, a pena máxima para o estupro é de 15 anos, quando a vítima tem menos de 14 anos.
Em uma nota oficial, a Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) convoca a sociedade a refletir sobre este Projeto de Lei e as consequências da punição para as vítimas de violência sexual, bem como para os profissionais que prestam assistência a elas.
A UFRJ questiona as intenções dos legisladores, afirmando que a proposta não respeita a laicidade do Estado e ignora a realidade das vítimas de estupro, que seriam forçadas a levar a gravidez até o termo. A Universidade critica a criminalização, defendendo que, em vez de punir mulheres e profissionais de saúde, a sociedade deve mobilizar-se para combater a violência sexual.
A UFRJ conclui que o projeto deve ser arquivado, reforçando a necessidade de proteger os direitos reprodutivos e assegurar que mulheres, crianças e adolescentes tenham autonomia sobre seus corpos e futuros.
A nota da UFRJ ganha respaldo quando são analisados os dados de segurança pública no Brasil. Dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024, revelam que os estupros de vulneráveis configuram a maioria das ocorrências de violência sexual no país, representando 76% dos casos. Em 2023, o Brasil registrou 83.988 vítimas de estupro, sendo 62.237 delas de estupro de vulnerável. Esses números preocupantes refletem um aumento significativo ao longo dos anos, passando de 43.869 vítimas em 2011 para os atuais 83.988.
A disparidade nas penas e a complexidade do sistema legal destacam a necessidade urgente de uma análise mais profunda sobre como o Brasil trata as vítimas de violência sexual e a proteção de seus direitos. Agora, mais do que nunca, é crucial que a sociedade se mobilize para criar um ambiente mais acolhedor e justo para aqueles que sobrevivem a essas atrocidades.
O estado do Rio de Janeiro registrou 5.528 vítimas de estupros e de estupro de vulnerável, com 3.836 casos de estupro de vulnerável. Entre as 50 cidades com mais de 100 mil habitantes, apenas Teresópolis figura nessa lista, ocupando a 35ª posição.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a maioria das vítimas são meninas (88,2%), sendo 52,2% negras e 61,6% com idade máxima de 13 anos. A pesquisa revela que 84,7% dessas crianças foram estupradas por familiares ou conhecidos, muitas vezes dentro de suas próprias casas (61,7%). “Essas crianças, que já vivenciam os traumas do abuso sexual, frequentemente enfrentam a difícil realidade da gravidez resultante de uma violência que mal conseguem compreender”, destaca o relatório.
Além disso, é recorrente que as vítimas sejam desencorajadas a registrar queixas nas delegacias. Com as estatísticas mais recentes, o Brasil passa a registrar um crime de estupro a cada 6 minutos, conforme os dados obtidos pelos órgãos policiais.
A Lei Federal 12.015/2009 modifica a definição de "estupro", incorporando, além da conjunção carnal, os "atos libidinosos" e os "atentados violentos ao pudor". De acordo com a legislação brasileira, o estupro de vulnerável é descrito como “qualquer ato de conjunção carnal ou ato libidinoso envolvendo vítimas menores de 14 anos ou incapazes de consentir por qualquer motivo, como deficiência ou enfermidade”.
O estupro é ocorrido dentro das próprias residências das vítimas e a cidade com maior taxa de estupro no Brasil é Sorriso, em Mato Grosso.
De acordo com um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especificamente o Objetivo 5, que visa “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”, e com a Meta 5.6, que busca “Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva, bem como aos direitos reprodutivos, conforme acordado no Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, na Plataforma de Ação de Pequim e nos documentos resultantes das conferências de revisão”, o Brasil deve estabelecer uma rede universal de atendimento às mulheres.
No que diz respeito à gravidez indesejada, as vítimas enfrentam ainda barreiras significativas impostas pelo serviço público para a realização de abortos legais. Recentemente, a Defensoria Pública de São Paulo ingressou com uma ação civil pública contra o Estado de São Paulo por falhar em garantir a interrupção da gravidez, mesmo nos casos previstos por lei.
No Brasil, 159 unidades hospitalares do SUS estão disponíveis para atender vítimas de estupro, sendo 17 delas localizadas no Rio de Janeiro:
Hospital e Maternidade de Angra dos Reis Hmar – Angra dos Reis
Hospital Municipal Victor de Souza Breves – Mangaratiba
Hospital da Mulher Heloneida Studart - São Joao De Meriti
Hospital Estadual Azevedo Lima - Niterói
Maternidade Escola da UFRJ - Rio de Janeiro
Coord. de Emergência Regional CER Realengo - Rio de Janeiro
Hospital Municipal Albert Schweitzer - Rio de Janeiro
Hospital Municipal Miguel Couto - Rio de Janeiro
Hospital Municipal Pedro II - Rio de Janeiro
Hospital Municipal Rocha Faria - Rio de Janeiro
Maternidade Alexander Fleming - Rio de Janeiro
Maternidade Carmela Dutra - Rio De Janeiro
Maternidade Da Mulher Mariska Ribeiro - Rio de Janeiro
Maternidade Fernando Magalhaes - Rio de Janeiro
Maternidade Herculano Pinheiro - Rio de Janeiro
Maternidade Maria Amelia Buarque De Hollanda - Rio de Janeiro
Maternidade Paulino Werneck - Rio de Janeiro
Não há uma explicação precisa para os obstáculos enfrentados pelas redes de saúde no país, que podem incluir preconceito, falta de preparo ou desinformação. No entanto, um fato é indiscutível: além de lidarem com os traumas da violência ao longo da vida, muitas vítimas de estupro, principalmente crianças, são forçadas a gestar o resultado dessa violência ou recorrer a serviços clandestinos de aborto.
Segundo a última Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), aproximadamente 10% das mulheres afirmaram ter realizado pelo menos um aborto até 2021, uma queda em relação aos 15% registrados em 2010. Os pesquisadores estimam que uma em cada sete mulheres tenha abortado aos 40 anos. A PNA também revela que a maioria dos abortos ocorre no início da vida reprodutiva: 52% das mulheres que abortaram tinham 19 anos ou menos na ocasião do primeiro procedimento. Além disso, a pesquisa constatou que taxas mais elevadas de aborto foram identificadas entre as entrevistadas com menor nível de escolaridade, assim como entre mulheres negras, indígenas e aquelas residentes em áreas mais pobres.
O aborto é crime no Brasil, mas existem três situações em que ele é permitido. São os casos de aborto legal: má formação do cérebro do feto (anencefalia fetal), gravidez que coloca em risco a vida da gestante e gravidez que resulta de estupro. Para as três situações, não há um prazo máximo para interrupção da gravidez e o procedimento autorizado pela legislação brasileira deve ser oferecido gratuitamente pelo SUS.
De acordo com o especialista Cristião Fernando Rosas, da Rede Médica pelo Direito de Decidir, para que seja feito o aborto legal, não é necessário Boletim de Ocorrência, exame corpo delito nem autorização judicial, mas sim o consentimento informado, claramente. No caso de estupro, o médico enfatiza que seria importante denunciar tal crime hediondo, mas isso não é necessário para que a mulher tenha seu direito reconhecido.
O especialista destaca a importância da Portaria 1.508/2005 na defesa dos direitos das vítimas nas unidades hospitalares, pois ela estabelece os procedimentos necessários para a justificação e autorização da interrupção da gravidez no SUS. Essa portaria orienta os profissionais de saúde e garante às mulheres seu direito à interrupção da gestação em casos de violência sexual. Além disso, cinco termos precisam ser mantidos em sigilo nos prontuários:
1. Termo de relato circunstanciado – descrição do incidente feita pela mulher ou pelo representante legal da vítima incapaz.
2. Parecer técnico – documento assinado pelo ginecologista que atesta a idade gestacional, confirmando-a como compatível com a data do estupro.
3. Aprovação do procedimento – autorização para a realização da interrupção da gravidez.
4. Termo de responsabilidade – alerta que a paciente pode ser responsabilizada por falsidade ideológica e aborto criminoso caso a denúncia de estupro não seja verdadeira.
5. Termo de consentimento livre e esclarecido – autorização da paciente para a interrupção da gravidez resultante do estupro.
Durante uma aula magna na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) no dia 8 de março, em celebração ao Dia Internacional da Mulher, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, propôs uma ampla campanha nacional pela descriminalização do aborto.
Barroso enfatizou que é “fundamental explicar à sociedade que o aborto não é algo positivo e deve ser evitado”. Ele argumentou que “o Estado deve oferecer educação sexual, contraceptivos e suporte para a mulher que deseja ter filhos, além de esclarecer que ser contrário ao aborto e buscar sua prevenção não implica em querer punir a mulher que enfrenta essa situação difícil”.