Belchior queria ser apenas aquele rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, de sua canção homônima. O isolamento do artista em prol do “cidadão comum” ficou demonstrado de maneira perfeita em “Belchior – O Musical: ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, peça teatral sob direção de Pedro Cadore e produção de João Luiz Azevedo. Encenado por uma temporada no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, mostrou um Belchior (o ator Pablo Paeleologo, que o interpreta), com seu alter ego como sombra: o personagem “Cidadão Comum“ (Bruno Suzano). Com banda ao vivo formada por seis músicos, o espetáculo demonstrou – através das canções de seu repertório – um artista descontente com o show bussiness, um letrista de mão cheia que queria apenas a simplicidade de um garoto soltando pipa, como mostra uma esquete.
A peça reflete, em algumas cenas, o artista intelectual, à frente de seu tempo, mas que tinha uma consciência desesperadora do mundo equivocado em que vivia. “Estou muito cansado/ do peso da minha cabeça”, entoou um Belchior atormentado em “Todo Sujo de Batom”. Já em “A Palo Seco”, ele cantou: “se você vier me perguntar por onde andei/no tempo em que você sonhava/de olhos abertos, lhe direi/amigo,eu me desesperava". O “sangramento em vida” do ser humano Belchior era clarividente em canções como “Conheço meu lugar” (“o que é que pode fazer o homem comum/neste presente instante senão sangrar?”) e “Sujeito de Sorte" (“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”).
A fuga incomum dos holofotes de um artista de sucesso, mas avesso à mídia e ao cotidiano fica clara no palco. “Minha dor é perceber/que apesar de termos feito tudo que fizemos/ainda somos os mesmos e vivemos/como nossos pais”. As entrevistas que entremeiam a peça teatral mostram um ídolo que não queria ser reconhecido. Dois anos após sua morte, em 30/04/2017, os últimos dez anos de vida de Belchior continuam intrigando a crítica musical e os amigos que não conseguiam achá-lo nos descaminhos de sua existência. Sua fuga para outros países e as dívidas deixadas por onde passou ficaram na história e ajudaram a contar a atmosfera em torno do cantor. “A minha alucinação/é suportar o dia a dia/E meu delírio/é a experiência/com coisas reais "(“Alucinação”). Palmas para o verdadeiro mito misterioso do povo brasileiro e latino-americano, que saiu de cena como quis: enigmático.