Responsável pelo acompanhamento dos processos criminais envolvendo as mortes do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, atingidos por soldados do Exército em Guadalupe, Zona Oeste do Rio, o advogado André Perencmanis admite que a concessão de habeas corpus pelo Superior Tribunal Militar para nove acusados pelos homicídios ameaça diretamente a celeridade do processo.
Para ele, o fato de os doze acusados no total, três dos quais sequer indiciados, estarem respondendo em liberdade tem consequências graves, difíceis de reverter de imediato. Os militares, um 2º tenente, um 3º sargento, dois cabos e oito soldados, foram denunciados pela prática dos crimes de duplo homicídio qualificado e tentativa de homicídio, previsto no art. 205, § ; 2º, III, do Código Penal Militar e omissão de socorro, descrito no art. 135, do Código Penal Comum
"Pelo Código de Processo Militar, quem tem o poder de recurso é o Ministério Público Militar, atuando junto ao STM. Nem a Procuradoria de 1ª instância, que fez a denúncia deixando claro aspectos como a omissão de socorro e os disparos pelas costas, dispõe desse poder. Nós que atuamos com as famílias conseguimos bom diálogo com a Procuradoria de Justiça Militar da 1ª Região, mas não temos canais abertos com o MPM em Brasília, junto ao STM, pelo menos até o momento," admite.
Perencmanis explica que as famílias ficaram muito abaladas com a decisão. Mais do que uma análise das chances maiores ou menores de sucesso imediato de um recurso, parece estar pesando o impacto emocional da liberação dos acusados, em um grupo de pessoas já abaladas pelo luto. O advogado chama atenção para o que considera uma fragilidade de argumentos do despacho garantindo que os acusados respondam em liberdade o processo.
"A ênfase, numa visão preliminar, foi de que não haveria elementos para concluir que os réus estivessem atuando conjuntamente e de forma contínua para a prática de crimes. "A desproporção, por si só, desaconselhava a decisão. São agentes do Estado, armados,contra vítimas pobres. Não precisam de telefonemas, de passar perto das casas das famílias, de nenhum gesto agressivo para produzir uma intimidação.Basta a lembrança A liberdade deles, na fase de instrução, aumenta o risco de descrédito na Justiça, de que testemunhas se sintam ameaçadas e desistam de enfrentar o processo," argumenta.
Um eventual recuo das testemunhas não eliminaria as chances de uma condenação, tal a força das provas periciais, mas seria um fator adicional a pesar contra a agilidade nas decisões. "Os depoimentos colhidos anteontem (terça, 21) e a perícia convergem em pontos fundamentais, de enorme relevância. Não foi disparado um só tiro em direção aos militares, nem encontrada qualquer arma, de tipo algum, contra as vítimas. Num primeiro momento, o grupo de militares se excedeu, atirando muito e errado. O que se seguiu é inequívoco, testemunho por testemunho, prova por prova: houve disparos pelas costas, com o carro já parado e as pessoas já feridas," exemplifica Perencmanis.
No caso do catador Luciano Macedo, alvejado ao tentar socorrer, no chão ao lado do carro, o motorista e músico Evaldo Rosa já agonizante, houve disparos contra ele quando tentou correr. "Os soldados não apenas se recusaram a socorrer os feridos, como fizeram piadas sobre a situação. O escárnio sugere a certeza da impunidade, é um reflexo do momento do País," considera.
A análise é dura, em tom amargo. Os precedentes sugerem um forte corporativismo na Justiça castrense, expresso pelas 25 absolvições em 25 casos de homicídios de civis, desde que a Justiça Militar recuperou a jurisdição exclusiva sobre acusações de casos associados a operações de segurança, mesmo fora dos marcos de uma intervenção federal ou de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem. Diante do exemplo da abertura de Procedimento Investigatório Criminal sobre os homicídios pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, um dia antes da denúncia pela Procuradoria Militar, o advogado sustentou ser discutível a competência da Justiça Militar para julgar esse tipo de crime, em que os acusados são colegas de farda dos julgadores.
Com tudo isso, Perencmanis não defende, ao menos por ora, o recurso a organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) ou o Conselho de Direitos Humanos da ONU. "A questão está nos tribunais, cabe recurso, mesmo que na prática a atribuição esteja com a seção do Ministério Público Militar junto ao STM, não com a primeira instância, que se mostrou mais sensíveis às provas técnicas, como os 257 disparos, dos quais 62 no carro. Nosso papel é evitar que o caso caia no esquecimento, como tantos. Não podemos deixar que a indignação se perca, sob pena de ver tragédias assim se repetirem. Contamos com a imprensa, com os meios de comunicação, para manter viva a memória e evitar a impunidade," conclui.