Cabelos loiros ao vento, batom forte na boca e megafone nas mãos. É assim que a ativista Indianara Siqueira é facilmente reconhecida nos protestos pelas ruas do Rio. Ela, e o séquito de seguidores, são moradores da Casa Nem (espaço que ajudou a fundar e abrigar transexuais em situação de vulnerabilidade) e admiradores, como os diretores do documentário que leva seu nome e foi lançado esta semana em Cannes, na França.
O longa-metragem "Indianara" participa da mostra Acid (Association du Cinéma Indépendant pour as Diffusion) e teve sessões lotadas na riviera francesa. Ao lado do longa-metragem "Dor e Glória", do diretor espanhol Pedro Almodovar, o documentário concorre com mais 18 filmes ao prêmio Palma Queer – dedicado a filmes com temática LGBTI –, que será anunciado hoje (24).
Há pelo menos três décadas, a ativista de 48 anos atua em defesa dos direitos de transexuais, mulheres, prostitutas e do acesso à saúde e à educação. O Brasil é o país que registra o maior número de mortes de pessoas trans no mundo, segundo a organização não governamental Transgender Europe (TGEU), com sede na Alemanha. Uma a cada dois dias, pessoas são mortas com uso de arma de fogo. Indianara roda o país em palestras alertando para estas estatísticas.
Os diretores do documentário, a francesa Aude Chevalier-Beaumel e o brasileiro Marcelo Barbosa, filmaram o cotidiano de Indianara por dois anos, desde 2016. Em cenas do seu dia a dia na Casa Nem, nas ruas, em protestos contra o governo do ex-presidente Michel Temer, durante a campanha nas eleições do ano passado e, ainda, na sua intimidade.
As câmeras entram na casa dela para falar de outro assunto urgente no Brasil: o HIV/Aids, doença que tem crescido entre os jovens no país. Indianara é casada com uma pessoa que tem a doença, vive um relacionamento sorodiscordante e fala dessa experiência com franqueza.
"Essa é uma doença crônica que, junto com os medicamentos, destrói o corpo das pessoas. Deixa a pessoa frágil, com dores, ele é uma pessoa com mobilidade reduzida, eu tento fortalecê-lo”, aproveitando para cobrar mais políticas de prevenção. “O Brasil tem que voltar a ser referência”.
O documentário também traz cenas de luto. Em meio as gravações, a ativista é surpreendida pelo assassinato da vereadora Marielle Franco. Por segurança, com ajuda de Organizações Não Governamentais internacionais que protegem defensores de direitos humanos, ela é convencida a instalar câmeras de vigilância pela casa.
"Eu sempre recebi ameaças e sempre ignorei. Mas hoje, não. Sofri um atentado, fui jogada de um ônibus em 2016, quando eu quase parei de militar. Mas em 2018, quando Marielle foi executada, as ameaças estavam mais fortes, parece que estavam próximas, recebemos ajuda para nos proteger. Hoje, eu tenho grades e esses monitores me lembrando o tempo inteiro disso”, revela.
A diretora Aude Chevalier-Beaum diz que Indianara e sua luta se confundem. “Íamos fazer apenas um retrato de Indianara, mas ela não separa a vida política e a vida pública, da vida pessoal e da vida íntima. Tudo o que acontecia no Brasil, acontecia também dentro dela, profundamente. É impossível separá-los”, disse em entrevista à Rádio França Internacional (RFI).
O filme teve três exibições em Cannes, com salas lotadas e contratos para rodar no circuito comercial, durante a semana. Agora, os diretores aguardam o anúncio da Palm Queer, previsto para a noite desta sexta-feira, em Cannes. Pelas reportagens na imprensa estrangeira e aclamação do público, as chances são muitas, torce a atriz e ativista trans Wescla Vasconcelos.
“Estamos compartilhando a representatividade de Indianara, do movimento trans no Brasil, com o mundo, é uma história do hoje”, disse. “As pessoas estão impressionadas com ela. Ela não é ‘só’ uma pessoa trans, na luta trans. Ela é uma ativista contra as desigualdades, contra a pobreza e as opressões”, completou.
Wescla representa Indianara, proibida de entrar na França por já ter sido condenada e presa, entre 2007 e 2009, pelo crime de cafetinagem.
A condenação é mais elemento intrigante na história da protagonista, acrescenta o diretor Marcelo Barbosa, em entrevista. “Indianara é uma personagem complexa. Ela é um ponto fora da curva também por não ser perfeita. Viveu na Europa e teve problemas com a Justiça. Aliás, mesmo já tendo cumprido sua pena, não pode voltar à França”.
Fonte: Agência Brasil