No final do mês de julho, um homem em situação de rua atacou um motorista e mais duas pessoas na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na ocasião, houve dois mortos e cinco feridos. De acordo com a polícia, Placido Correa de Moura, o agressor, tinha histórico de problemas psiquiátricos e registros por outras agressões. O engenheiro civil, João Feliz de Carvalho Napoli, e o professor de educação física, Marcelo Henrique Correa Cisneiros Reis, foram às vítimas fatais de mais uma tragédia na capital carioca.
O caso chocou não apenas por ter como desfecho a morte de inocentes, mas também chamou a atenção para um aspecto que exige ações urgentes das autoridades: mais políticas públicas eficazes no atendimento a população em situação de rua do estado.
Segundo dados de um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no início de 2019, mais de 101 mil pessoas estavam morando nas ruas do país. Desse total, aproximadamente 14 mil estão no Rio de Janeiro. A Defensoria Pública do Estado estima que o índice possa alcançar 15 mil pessoas. Já as estatísticas do Ministério da Cidadania possuem apenas os dados da população em situação de rua inserida no Cadastro Único. Até junho, no Brasil, haviam 125.139 famílias inscritas no Cadastro.
Em 2018, uma pesquisa da prefeitura da cidade de Niterói identificou cerca de três mil moradores de rua. No município de São Gonçalo, o número chegou a 1.304. Entre os principais fatores que influenciaram o aumento das taxas estão os problemas mentais, o uso de drogas e os conflitos no ambiente familiar.
Infelizmente, tal realidade não passa desapercebida aos olhos dos visitantes e de quem vive nessas cidades. Basta caminhar pelo Centro carioca para perceber a quantidade de indivíduos largados pelo chão em uma das principais avenidas da capital: a Presidente Vargas. A faixa etária varia, mas o que mais impressiona são as condições precárias que tais cidadãos estão submetidos. O cenário mistura insalubridade, drogas, problemas psiquiátricos e, principalmente, o descaso com a vida humana.
Dados da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) indicam que a cidade possui 63 abrigos, sendo 39 públicos e 24 conveniados, totalizando 2.335 vagas. A ocupação média mensal das unidades alcança 3.075 usuários. Esse valor, maior que as vagas, se explicaria pelo fato das pessoas usarem as unidades em momentos distintos.
Além disso, de acordo com a SMASDH, não há um número exato da população em situação de rua no estado. Em breve, o órgão juntamente com o Instituto Pereira Passos pretende fazer um censo do contingente para saber com exatidão o total de pessoas que moram ou passam uma boa parte do dia nas ruas da cidade. O levantamento deverá ser realizado até o final do ano e, posteriormente, os resultados serão divulgados para a população.
Os diferentes índices e a discrepância de atualização das estatísticas revelam não somente números desencontrados, mas também uma possível falta de compromisso e interesse com a vida dos moradores de rua. Como resultado, a invisibilidade ganha forma de epidemia, cresce silenciosamente e quando surge nos noticiários, normalmente, vem acompanhada de episódios trágicos ou violentos. Os invisíveis existem.
Tons de esperança
Para Ricardo Tavares, fundador do Projeto Ores, o problema das pessoas em situação de vulnerabilidade também é uma questão política. Ele ressalta a falta de comprometimento da Prefeitura do Rio, bem como a ausência de conhecimento de campo do atual responsável pela pasta de Assistência Social do município, o vereador João Mendes de Jesus.
"Há uma série de aspectos a serem observados e que contribuem para a taxa crescente de pessoas em situação de rua. No entanto, vale lembrar que somente em 2019, a pasta que trata da assistência social perdeu R$ 1,5 milhões do seu orçamento. Aliado a isso, ainda temos o aumento do desemprego, da ação das milícias que expulsam as pessoas das suas casas, além dos problemas psiquiátricos e associados ao uso de álcool e outras drogas", destacou Ricardo.
Sobre a dependência química e o alcoolismo, o ativista ainda ressaltou os prejuízos causados nas vidas dos indivíduos.
"Muitas vezes, depois que estão nas ruas, as pessoas perdem a esperança e acabam se envolvendo com as drogas. Pensando em amenizar a situação e também a fome, elas bebem ou usam a cocaína. Quem se envolve com o crack, por exemplo, acaba indo para as ruas com o intuito de manter aquela vida miserável, sem ter consciência da própria degradação. Com isso, passam a depender da boa vontade de outros seres humanos para se alimentarem e realizarem as suas necessidades básicas", lamentou.
É neste contexto que o projeto Ores atua. A ação social atende as pessoas em situação de rua oferecendo um banho de cidadania a esses cidadãos quase invisíveis. Literalmente, desde 2016, Ricardo e sua equipe de voluntários tentam reintegrar e ressocializar aqueles que procuram o apoio da ONG.
"Nós não vamos para as ruas apenas dar banho. Nós queremos mudar histórias de vida. Queremos entendê-los e buscar uma solução para o problema deles. Esse é o nosso desafio e propósito. Na concepção política, os moradores de rua não são úteis, pois não representam votos. Logo, são jogados ou esquecidos. Tanto que as políticas públicas para atendê -los quase não existem. Nos últimos 20 anos, a maior evolução que temos é que eles deixaram de ser chamados de moradores de rua para serem definidos como população em situação de rua. Uma prova da falta de entrosamento do poder público. A política brasileira não se preocupa com isso", lamentou.
Levando o banho para as ruas do Centro do Rio, precisamente no Largo da Carioca, o Ores tornou-se uma das principais ações de apoio para quem vive à margem da sociedade no coração da cidade maravilhosa. Apesar de prestar um grande serviço a população em situação de rua, o projeto não tem nenhum incentivo das esferas públicas do estado. Segundo Ricardo Tavares, líder do movimento, os grupos que convivem com a triste realidade não são ouvidos e nem promovidos. Por isso, seguem se mobilizando voluntariamente e acreditando na esperança por dias melhores.
Renato M., 33, já foi atendido pelo projeto. Ele contou que ficou por alguns meses em situação de rua por causa de conflitos familiares e outros motivos pessoais. Hoje, depois de ter recuperado a sua dignidade, retornou a vida normal e também para casa.
"Quando fiquei nas ruas, eu tomei banho e escovei os dentes com ajuda do Ores. Agora, agradeço por ter retornado ao trabalho. Com o apoio deles, aluguei uma quitinete e consegui um emprego. Só quem passa pelas ruas sabe como é. Dormir em papelão, não ter um lugar para fazer as necessidades e ficar largado ao relento. Agradeço a Deus. Hoje, dou valor às coisas mínimas e compartilho a minha felicidade com esses anjos. É importante nunca desistir dos nossos sonhos", comemorou Renato.
Nuances da humanização
A psiquiatra Maria Tavares é professora do Departamento de Psiquiatria da UFRJ. Durante dez anos, coordenou o atendimento de pacientes esquizofrênicos em situação de rua. O projeto foi considerado o embrião do Consultório nas Ruas que já fez parte do Plano Nacional de Saúde Mental e que, atualmente, está na política de Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ela afirmou que existem algumas pesquisas no mundo e no Brasil que observam a incidência de transtornos mentais nas pessoas em situação de rua. Contudo, a especialista disse que a questão é bastante complexa, pois envolve outros aspectos que podem ser ignorados em uma análise superficial.
Para a professora, um dos principais fatores que influenciam a ida de um indivíduo para as ruas é a sua vulnerabilidade social.
"É importante verificarmos as condições sociais de cada um. Se essas pessoas possuem, ou não, uma rede de apoio em suas vidas. De fato, é comum encontrarmos muitos etilistas e usuários de outras drogas. Nestes casos, por exemplo, verificamos a perda da capacidade de trabalho, sociabilidade e também da assunção de responsabilidade", comentou.
Sobre os pacientes com esquizofrenia, a médica relembrou que durante a sua experiência, ela observou que apesar deles apresentarem uma característica de "andarilhos" quando encontrados e atendidos em suas demandas, o retorno ao seio familiar acabava sendo bastante surpreendente.
"Sempre que conseguíamos encontrar a família dos pacientes esquizofrênicos, a reação era mais positiva do que negativa. Isso porque, o reencontro acabava extinguindo a dúvida sobre a morte daquela pessoa ou do seu paradeiro. Outro aspecto interessante era a resolução da situação da renda que acabava contribuindo com o orçamento das famílias", ressaltou.
Maria Tavares ainda esclareceu que a vida nas ruas não enlouquece. Entretanto, é possível que quem esteja vivendo dessa maneira acabe se deprimindo ou se envolvendo com a dependência química. Ela também explicou que, embora as políticas públicas tenham evoluído e se tornado primordiais no atendimento da população em situação de rua, hoje, o país está sofrendo com a falta de investimento em ações eficazes. Isso está favorecendo o tratamento em comunidades terapêuticas.
"Atividades como o CAPS, Álcool e Drogas e o Consultório na Rua são políticas bastante favoráveis para o cuidado da população carente. O Consultório na Rua, por exemplo, vai até o indivíduo e começa a construir uma rede e tratar as principais demandas do paciente. Muitas vezes, o problema não é o alcoolismo ou as drogas, mas sim, a fome, a desnutrição, alguma doença ou conflito social. Não necessariamente, tirar uma pessoa da rua e jogá-la em uma unidade de terapia vai resolver o problema. O erro é focar em um aspecto e ignorar todos os outros", alertou Maria.
Em junho deste ano, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 13.840/19. Ela trata da internação compulsória para usuários de drogas. No início de agosto, o governo e a prefeitura do Rio de Janeiro começaram a articular a aplicação da legislação no estado, que seria o primeiro a iniciar as internações. Segundo Maria Tavares, a medida viola os direitos humanos e não é a melhor saída para o tratamento da dependência química.
"A alternativa não resolve os problemas reais. É preciso que o tratamento favoreça a criação de vínculos. A internação compulsória somente é indicada se realmente for uma caso de vida ou morte. O sujeito ser obrigado a ir para um lugar não vai salvá-lo. Vencer esses obstáculos é um trabalho que exige tempo, não é algo de imediato. O imediatismo parece mais com o desejo de limpar às ruas do que com a vontade de cuidar do outro", relembrou.
Sob o prisma da loucura
Teoricamente, o prisma é uma figura geométrica sólida e com um número limitado de faces laterais. Ele é tridimensional, ou seja, possui diversas dimensões. Uma de suas funções mais curiosas é a capacidade de decompor a luz branca refletindo outras possibilidades de cores.
Fazendo uma analogia com a saúde mental, podemos sugerir que um diagnóstico não necessariamente significa a ausência de alternativas de vida. Ser uma pessoa em situação de rua, ou alguém que vive abandonado devido os problemas psiquiátricos e sociais, não deve e nem pode ser encarado como o fim da estrada. Grandes visionários da psiquiatria já foram capazes de provar o contrário. A médica alagoana Nise da Silveira foi uma delas.
Em tempos de tratamentos violentos, Nise propôs outro olhar sob os pacientes portadores de doenças da mente. Em 1926, pioneira em seu ofício, a especialista foi à única mulher entre os 157 formandos da turma de médicos da Faculdade de Medicina da Bahia. Ela também foi capaz de compreender as demandas ignoradas, até então, pelos seus colegas de profissão.
Quando em 1944, assumiu o setor de Terapia Ocupacional do Hospital Pedro II, no bairro do Engenho de Dentro, promoveu uma verdadeira revolução na psiquiatria, implantando o modelo de terapia no tratamento. Nise da Silveira usou a arte para demonstrar que era possível resgatar a dignidade e o direito à vida daqueles que carregavam o peso da loucura e a dor da exclusão.
A proposta terapêutica e revolucionária da médica também serviu de base para o modelo da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Desde abril de 2001, por meio da Lei 10.216, o modelo assistencial que atende pessoas portadoras de transtornos mentais sofreu uma mudança significativa. Uma transformação complexa que exigiu a desinstitucionalização dos pacientes, bem como a reinserção deles na sociedade e no seio familiar.
Após quase duas décadas, as medidas não representaram a concretização do processo como um todo. Contudo, significaram uma importante evolução na estrutura assistencial. Dados do Ministério da Saúde também revelaram que, no ano de 2009, o número de leitos psiquiátricos diminuiu de 86 mil (1991) para 35.426. O crescimento do número de Centros de Atendimentos Psicossociais foi de 1.541 em todo o país. Uma estatística que apontou um caminho mais democrático e preocupado com a realidade dessas pessoas.
Desde então, de fato, as diversas faces de um mesmo problema puderam ser discutidas. Todavia, o sucesso completo caminha a passos lentos e ainda precisa de muitos debates. Enquanto a utopia de um atendimento genuinamente humanizado permanece no papel, o mundo real sofre com as suas mazelas aparentemente incuráveis. Crescem não somente os índices, mas o desinteresse em revolucionar o óbvio.