Quando a política sucumbe ao extremismo religioso e a democracia falha em prevenir o ódio, o resultado é sempre a violência.
O novo conflito, deflagrado no último dia 7 de outubro após o sanguinário e injustificável ataque do HAMAS a civis e que se desenrolou em uma resposta brutal de Israel a Gaza, tem origem em um passado muito distante, mas traz um elemento tão significativo que resiste ao tempo: o extremismo religioso.
Não farei uma digressão aos tempos de Abraão, até o período de Noé ou aos tempos do Rei amorita de Basã, Ogue, para explicar a gênese de palestinos e judeus e sua relação com as terras onde hoje se localizam Israel, Gaza, Cisjordânia e todo entorno. Basta concentrarmos nossas atenções na segunda metade do Século XX, mais precisamente após a fundação do Estado de Israel, em 1948.
Desde a Resolução 181 da ONU, que estabeleceu a partilha da Palestina, observamos a eclosão de conflitos violentos, motivados, em grande medida, pela forma como foi realizada a divisão. Para judeus, foi designado 55% do território e para os muçulmanos, 45%, sendo que possuíam uma população correspondente ao triplo da população de judeus na região. Questões relacionadas a qualidade das terras agricultáveis e a extensão territorial motivaram, em grande medida, a não aceitação dos termos pelos árabes.
As Guerras da Independência de Israel, Guerra dos Seis Dias e Guerra do Yom Kippur, mergulharam a região em sangue, mas líderes dos dois lados do conflito secular tentaram o entendimento e, em alguma medida, ele chegou em certo momento. Em 1979, foi celebrado o acordo de Camp David, onde os líderes egípcio – Anwar el-Sadat – e o israelense – Menachem Begin, estabeleceram a paz entre as nações, a devolução de territórios e o Egito reconheceu o Estado de Israel. Naquele período, a Palestina já possuía uma liderança unificada, estando sob a coordenação da Organização Para Libertação da Palestina, de Yasser Arafat. Tornavam-se cada vez mais plausíveis a construção da paz e da estabilidade na região. Até que, em outubro de 1981, Anwar Sadat é assassinado durante uma parada militar por membros da Jihad Islâmica Egípcia, grupo extremista que tem suas origens nas tropas da Irmandade Muçulmana.
Os anos 80 foram marcados pelo início das Intifadas, revoltas populares palestinas contra a ocupação israelense. Os processos de paz enfrentaram obstáculos. Entretanto, em 1993, o Primeiro Ministro Israelense, Yitzhak Rabin, realizou junto ao líder da Autoridade Palestina, Yasser Arafat, os acordos de Oslo, que vislumbravam a construção da paz duradoura entre palestinos e israelenses, através de um conjunto de consensos entre os dois líderes. Contudo, em novembro de 1995, quando participava de um comício pela paz em Tel Aviv, Rabin foi alvejado e morto por Yigal Amir, extremista religioso israelense que se opunha aos tratados de paz com os árabes. Durante seu julgamento, Yigal Amir não demonstrou arrependimento e afirmou estar agindo em acordo a lei judaica.
Essa indispensável análise histórica se faz fundamental para o entendimento do conflito atual. O processo político da região nos mostra, de forma clara e evidente, que em determinados momentos o consenso entre as partes foi alcançado, significando que, no campo da política, interesses estratégicos de israelenses e árabes foram alcançados de forma a possibilitar uma convivência pacífica entre ambos.
Tomando por base uma observação estratégica, é impossível supor que Anwar Sadat, líder egípcio responsável pelo comando das forças árabes da Guerra do Yom Kippur, reconhecido por ter restaurado a honra dos exércitos egípcios e ter forçado Israel à mesa de negociações, estaria abrindo mão de interesses nacionais do Egito no campo da geopolítica quando celebrou o pacto de Camp David e reconheceu o Estado de Israel. Seria ainda inconcebível imaginar que Yitzhak Rabin, herói da Guerra de Independência de Israel, militar de destaque das Forças de Defesa e exímio estrategista, estivesse colocando em risco o Estado de Israel com os acordos que celebrava em Oslo. Mesmo assim, esses dois heróis nacionalistas – é importante destacar essa posição política de ambos – foram acusados de “traidores” por grupos de fundamentalistas religiosas em seus países, e perderam a vida em função do extremismo.
Os métodos sanguinários adotados pelo fundamentalismo muçulmano são conhecidos. A imprensa ocidental os relata com clareza e muita pertinência. Grupos xiitas (mais tradicionalistas) e sunitas (mais ortodoxos) possuem ampla cobertura midiática. Organizações como o Hamas, Al-Qaeda e Estado Islâmico representam segmentos que, a partir de interpretações próprias do islamismo, utilizam o terror para reafirmar suas convicções. Contudo, é pouco noticiada a extensão e profundidade dos grupos de ódio que permeiam atualmente o centro do poder em Israel. Figuras como Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, membros do Partido Sionista Religioso, estão à frente de pastas relacionadas à segurança de Israel e possuem uma trajetória marcada pala violência e o discurso de ódio. Supremacista judaico, Ben-Gvir é herdeiro político do rabino extremista Meir Kahane, que nos anos 80 promoveu sua retórica anti-árabe quando eleito ao parlamento de Israel pelo Partido Kach. Por motivar atos violentos contra árabes, se opor à mistura étnica e propor uma supremacia judaica, o Knesset – parlamento de Israel – baniu Kahane das eleições de 1988 e o partido Kach foi inserido na lista de organizações terroristas pelos Estados Unidos. Pupilo de Kahane, o aliado de Netanyahu acumula dezenas de processos, um deles de 1995, quando danificou o veículo do então líder israelense Yitzhak Rabin e, após o incidente, afirmou à imprensa que o próximo passo seria “pegar o Primeiro Ministro”, assassinado naquele mesmo ano por outro extremista israelense.
Após a constatação histórica dos fatos e a identificação dos atores por trás da crise, concluímos o óbvio: é o fundamentalismo religioso, baseado em interpretações equivocadas de escrituras sagradas, o germe central responsável pela mobilização da fé como instrumento de desestabilização e promoção dos ódios. Notamos claramente que, com o passar do tempo, os interesses estratégicos nacionais, sejam de Israel ou de Palestinos – que ainda não possuem Estado – foram sendo transmutados em causas doutrinárias de lastro religioso. A razão foi suprimida por interpretações radicais da fé e interesses políticos substituídos por intolerância étnica, racial e religiosa. Para o Hamas e demais grupos de ódio islâmicos, não está em jogo a criação de um Estado Palestino e sua autonomia e sim a supressão de Israel e a aniquilação do povo judeu. Da mesma forma, para radicais israelenses que compõe hoje a cúpula do Knesset, não está em debate a coexistência com os árabes e sim a eliminação de todos esses que ocupam as regiões de Gaza e Cisjordânia, áreas entendidas como parte de uma “Grande Israel” preconizada em textos sagrados.
Poderíamos avançar ainda mais nessas constatações ao abordar o percentual de responsabilidade que certos países do ocidente possuem nessa escalada dos fanatismos, principalmente quando, a partir da utilização de métodos de Guerra Híbrida, influenciaram na supressão de governos nacionalistas em países árabes, o que resultou na organização e fortalecimento de grupos extremistas. Contudo, deixemos essa análise para um próximo artigo. Resta aqui apenas a conclusão inicial de que hoje, em 2023, enfrentamos enquanto humanidade, mais uma vez, o desafio do combate à intolerância sob a pena de extinção da nossa própria condição humana.