Nessa semana, o governo federal apresentou aos governadores dos estados, um Projeto de Emenda a Constituição visando responder ao clamor cada vez maior da população por melhoria na segurança pública. O sofrimento é geral e o governo sabe muito bem que se nada for feito ou proposto no sentido de contornar, ou ao menos estancar a onda de violência que arrasta o país, receberá a fatura pela inação na eleição de 26.
Em primeira observação, a iniciativa parecia interessante, demonstrava ao menos a saída da completa inércia do governo federal frente ao tema da segurança. Entretanto, após a leitura criteriosa dos 8 (oito) artigos que compõe a proposta, contatamos com muita tristeza a total desconexão existente entre os dirigentes públicos e a realidade vivenciada nas ruas de todo o Brasil.
De forma bem objetiva, o texto apresentado propõe uma maior participação do governo federal na elaboração de diretrizes voltadas à política de segurança em todo território nacional, incorporando ainda à Constituição o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública). Além disso, o texto trata da ampliação do espoco investigativo da Polícia Federal, conferindo à instituição maior autoridade para investigação de facções e os crimes por elas cometidos entre os Estados federados. Por fim, e não menos importante no texto, o Ministério da Justiça propõe a transformação da Polícia Rodoviária Federal em uma Polícia Ostensiva Federal, instituição que, para além do patrulhamento de ferrovias e rodovias, poderá exercer o papel de força de segurança auxiliar a estados e municípios no caso de risco à ordem pública ou outras situações onde se julgue necessária sua atuação.
Com toda sobriedade que o momento exige, a leitura fria das propostas apresentadas gera no mínimo um profundo desapontamento, e os motivos não são poucos. Só no Rio de Janeiro existem mais de 1.000 (mil) favelas, todas, absolutamente todas elas dominadas por algum grupo criminoso. Segundo levantamento apresentado em 2020, elaborado pelo Geni/UFF, Fogo Cruzado; Núcleo de Estudos da Violência da USP; a Pista News e o Disque-Denúncia, 3,76 milhões de pessoas vivem sob o domínio de algum grupo criminoso, sejam facções ou milícias, em um universo de 6,7 milhões de habitantes. Se observarmos por bairros ocupados, os números demonstram que quase 100 bairros da capital estão dominados e seus moradores inteiramente reféns. Para piorar ainda mais a situação, observa-se na maioria desses territórios a implantação de barricadas ou outros mecanismos de engenharia que visam impedir o acesso das forças de segurança e também controlar o fluxo dos moradores nas comunidades.
Além dos números assustadores da extensão da gravidade a qual o Rio está submetido, a PEC parece ignorar ainda o cotidiano de abusos e violações de direitos aos quais os moradores dessas comunidades estão submetidos. Nessas localidades, facções e milícias estabelecem verdadeiros tribunais locais, julgando, condenando e punindo moradores segundo seus designíos. Meninas e mulheres têm seus cabelos cortados ou passam por espancamentos, trabalhadores são obrigados a submeter-se a cobrança de tributos e, em caso de resistência, são mortos ou torturados, serviços públicos e de emergência em saúde tem seu acesso dificultado no socorro aos moradores, taxis ou motoristas de aplicativo são impedidos de trafegar por várias áreas e os moradores impedidos e cerceados no seu direito constitucional de ir e vir. Não há, em hipótese alguma nessas localidades, o império do que muitos chamam de “Estado Democrático e de Direito”.
Além do exposto até aqui, cabe ressaltar ainda a agressividade das quadrilhas de demais grupos armados que encontram abrigo das facções e milícias. Bandos de roubo de carga, de carros ou de celular, tem praticado o terror em demais áreas da cidade, com uma brutalidade cada vez maior, o que demonstra o total desprezo pela vida alimentado por esses grupamentos. Recentemente, membros de uma fação criminosa abriram fogo de forma deliberada contra trabalhadores inocentes que se deslocavam pela Avenida Brasil. O objetivo da ação? Causar terror e impedir a polícia de avançar em sua operação interior daquela comunidade ocupada. Além desse caso recente, poderia passar dias relatando aqui o assassinato cotidiano de pessoas inocentes, vítimas de bárbaros homicidas que não se furtam em puxar o gatilho de suas pistolas ou fuzis em nome de um celular ou um veículo.
Frente a tudo isso, choca a fragilidade de uma PEC que não considera mais modernizações no Código Penal Brasileiro, instituído pela Lei nº 2.848, de dezembro de 1940. Espanta e causa grande estranheza que o Ministro Lewandowski, em sua missão institucional, não tenha, em momento algum, proposto aos Governadores alterações na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, a famosa “LEP”- Lei de Execuções Penais. Por vezes já observamos contingentes de criminosos que: beneficiam-se da progressão de penas e retornam ao crime; que se utilizam da prerrogativa das visitas íntimas para o estabelecimento do contato com as quadrilhas no exterior das cadeias, comandando chacinas e ordenando execuções; daqueles que em virtude do direito de responder em liberdade frente às várias etapas recursais, se mantém na prática de delitos ou os muitos que encontram nas famosas audiências de custódia, refúgio seguro para seguir praticando o crime, na certeza clara da impunidade.
A história mostra, com muita dor, o que acontece a nações que não agem com rigor frente a barbárie. No caso do Rio de Janeiro, estamos próximos a um estágio de não retorno, onde a solução para recuperação de territórios e libertação de trabalhadores e cidadãos só será possível por meio do uso total da força. Tempos difíceis se apresentam e nós, enquanto sociedade, não podemos naturalizar a barbárie. Não é natural, em hipótese alguma, que donas de casa ou pais de família tenham que se sujeitar ao pagamento de tributos a milícias armadas. Não é normal aceitarmos que mães e pais pobres assistam suas filhas sendo abusadas ou torturadas por membros de facções criminosas, sem que possam recorrer a polícia ou a justiça por estarem cativas em um território dominado. Não é normal aceitarmos uma condição de vida que impõe o medo ao sair de casa e faça da rotina uma prisão.
Dito tudo isso, alerto a todos os verdadeiros democratas que, em momentos difíceis, a Democracia possui remédios amargos, mas necessários. Entretanto, se a própria Democracia falha em utilizar suas prerrogativas típicas para sua preservação, as consequências podem ser o incontrolável caminho do arbítrio.