O Rio assistiu nessa quinta-feira (24/10/2]24), a mais um capítulo cruel da brutalidade gerada por grupos criminosos que dominam territórios, instalam barricadas e mantém milhões de moradores reféns do arbítrio. Bandidos da facção criminosa Terceiro Comando Puro (TCP), localizados na região conhecida como “Complexo de Israel”, que engloba as comunidades de Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas, abriram fogo contra veículos de passeio e coletivos que passavam na Avenida Brasil, executando - de forma fria e brutal - três trabalhadores inocentes e deixando mais três feridos.
Ainda não tinha amanhecido quando a Polícia Militar se dirigiu às comunidades da Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas, com o objetivo de apreender quadrilhas responsáveis pelo roubo de carga e de carros na cidade. Imediatamente, objetivando fazer com que as forças policiais abandonassem seu progresso, homens armados da facção direcionaram seus fuzis para a direção oposta aos policiais, disparando contra motoristas e trabalhadores que passavam pela Avenida Brasil. O caos criado no trânsito e as vítimas baleadas levaram imediatamente o Comando da Polícia Militar a realizar a ação acertada de recuar da comunidade, saindo em defesa dos civis alvos na via expressa. Talvez, de forma inédita, o Rio tenha se deparado com a utilização de uma tática de terror explícita, que faz de civis alvos, com o objetivo de acuar os agentes do Estado.
Enquanto as vítimas ainda eram socorridas, a imprensa já noticiava o fato e vários integrantes da classe política ou membros da “intelectualidade” carioca, começavam a acusar o Governo do Estado, culpando o Governador ou a cúpula da segurança pelo ocorrido. Sem saber detalhes da operação ou sobre como os fatos se desenrolaram, os apressados afirmavam, e seguem afirmando, que a polícia não deveria realizar operações em determinado horário e que teria ocorrido uma grave falha dos sistemas de segurança, culpados finais pela catástrofe. Nesse momento, perante a onda de insensatez, passei a refletir sobre em qual momento nós, enquanto sociedade, começamos a naturalizar a reação de bandidos, ou a normalizar o fato de alguém, com um fuzil, apertar o gatilho contra inocentes. Ora, vejamos bem, se afirmamos que a polícia é a culpada pela morte dos inocentes, sem terem sido os policiais aqueles a apertar o gatilho, ou até mesmo sem estarem os policiais entre os civis no momento dos disparos, estamos, de forma muito direta e sem qualquer margem para o subjetivismo, reconhecendo que os marginais irão atirar, e para tanto, deve o Estado omitir-se no cumprimento de suas funções em razão de um suposto “direito” dos donos ilegais desses territórios. Nobre leitor, consegue entender a grave inversão narrativa à qual estamos sendo submetidos e suas graves consequências? A culpabilização contundente do Estado, nesse caso em especial, significa o reconhecimento social do domínio de um território e a conferência aos seus mandatários do direito de defesa ou reação. Em lugar algum no planeta Terra, a polícia seria a culpada pela morte de inocentes assassinados por terroristas em decorrência de uma ação policial que visava justamente a apreensão dos vilões.
O caos na segurança do Rio não é novo. Não seria, de forma alguma equivocada, a crítica às políticas de segurança, ao preparo dos policiais, ou a ausência do Estado nas comunidades enquanto agente promotor do desenvolvimento. Sou, de forma muito particular, um crítico da organização da segurança, não só no Rio como no Brasil, mas precisamos ter clareza quanto a mensagem que queremos passar. Foi, e está sendo profundamente irresponsável, o comportamento de vários setores da sociedade que se esforçam uma vez mais em culpar a ação policial pela perda das vidas de inocentes. Alguém se esforça em saber o que acontece no interior dessas comunidades dominadas pelo terror? Alguém já buscou se informar o que acontece quando alguém, morador de uma das comunidades que compõe o “Complexo de Israel”, professa sua fé em uma religião de matriz africana e instala um terreiro em seu quintal de casa? Perante o reconhecimento de um pretenso direito dos marginais em atirar e manter seu território, devem então as polícias abrir mão do seu dever constitucional em adentrar esses territórios para apreender os criminosos? Bom, é basicamente isso que estamos afirmando quando, de forma vergonhosa, mudamos os culpados nessa história e colocamos na cruz homens e mulheres que, mesmo sob condições muitas vezes precárias de trabalho, cumprem sua função e colocam suas vidas em risco para impedir a proliferação de quadrilhas e bandos armados.
Dito isso, faço um apelo desesperado ao paciente leitor que chegou até aqui, para que, evitando paixões ideológicas ou a fratricida polarização da vida, reflita sobre o Rubicão que já cruzamos. A tática de terror implementada por uma facção chefiada por um indivíduo que se intitula pregador religioso e que impõe sua deturpada visão de fé sobre territórios da cidade com o uso extensivo da força, é o simbolismo máximo do grau de perigo representado por aquilo que a academia atual chama de “narcopentecostalismo”. Se já não bastassem os riscos causados à democracia quando se juntam religião e política, imaginem as ameaças representadas pela soma das armas e do domínio de vastas fontes de recursos representadas pelo comércio da droga, do roubo de cargas ou de veículos.
Precisamos discutir o formato de segurança pública que queremos e pensar sobre a eficiência das nossas polícias, objetivando a proteção de trabalhadores e de toda a sociedade? Com total certeza! Assim como precisamos, imediatamente, refletir sobre a libertação dos vastos contingentes de cidadãos que se encontram reféns do poderio das milícias e das fações criminosas, sendo tolhidos os seus direitos de ir e vir e, agora, de expressar livremente sua fé.
A tática bárbara de terror utilizada pelos grupos criminosos liga vários sinais de alerta em toda a sociedade. Não estamos lidando mais com comerciantes varejistas que tem como objetivo uno a obtenção de lucros advindos da droga ou roubo de carros. Estamos claramente frente a uma nova face do ódio, com a qual não estávamos acostumados no Rio, onde religião, tráfico, práticas ilegais e domínio territorial fundiram-se e, de forma assustadora, se apropriaram de táticas de terror para enfrentar o Estado e impor o medo. A sociedade, através de suas forças em todas as esferas de poder, precisará responder ao ocorrido de forma muito contundente, sob a pena de sermos todos engolidos por uma verdadeira onda de ataques sem precedentes. Não faço aqui alarmismo algum, só quero indicar ao perseverante leitor que, sem uma resposta adequada, corremos o risco de sermos todos reféns de uma nova geração de bandidos que encontra em uma lógica perturbadora de fé, justificativa para seus atos e até conforto redentor para suas práticas perversas.
Acordem!