É muito complexo quando somos críticos teatrais e vamos assistir a uma peça cujo tema já abala nossas emoções.
Ter que apontar se o espetáculo vale ou não a pena ser assistido torna-se muito complicado, pois preciso saber até onde manifesto apenas meu lado fã de um personagem, sem ser injusta, não desabonando o que é para ser desabonado.
Falar do Ney Matogrosso é um prazer inenarrável, pois falo de um homem com um legado imenso em vida, o que no Brasil é raro. Ney está para além de um artista, é um homem abraçado pela arte. Seu corpo respira arte, sua mente e coração batem no mesmo sentido. Apenas quem conhece o artista entende do que escrevo. Portanto, se me perder entre uma crítica teatral e uma fã de carteirinha que me perdoem, mas em mim há sentimentos e aprovação da poesia que emanam de um dos maiores artistas desse país.
Para começar, o artista Renan Mattos vem com toda a sensualidade precisa para interpretar Ney. Olhares e expressões corporais fidedignas, nada que mereça um apontamento negativo. Muito pelo contrário: há no artista, certamente, uma apropriação dessa performance muito bem executada por também admirar o cantor, não tenho dúvidas. Porque se percebe a paixão em Renan, sentimento este que, no palco, lhe rendeu o Prêmio Bibi Ferreira.
A voz de dele também é qualificada para abraçar o personagem!
Dificilmente tiro fotos com artistas, sempre saio correndo para outro espetáculo. Nesse dia, corri contra o tempo, pois eram três espetáculos a serem assistidos. Se não fosse esse o caso, eu aguardaria Renan para um abraço e agradecimento. Fato!
Não vou esquecê-lo, principalmente cantando a canção “Sangue Latino”, um desbunde para todos da plateia. Aliás, o artista é aplaudido antes mesmo de a canção começar!
O espetáculo faz uma viagem através da vida do artista e também das grandes canções que, até os dias atuais, embalam os brasileiros.
Confesso que saí do teatro abraçada pela emoção e regozijada por ouvir músicas que considero bálsamos aos meus ouvidos.
A dramaturgia de Marilia Toledo e Emílio Boechat, também vencedora do Prêmio Bibi Ferreira, parece ter sido o resultado de pesquisas profundas, não só da biografia lida. Fiquei um pouco tímida diante de algumas informações tão intimistas do Ney na dramaturgia. No entanto, sabe-se que elas estavam nas biografias estudadas e algumas reportagens. “Com a ajuda do próprio Ney, tentamos ser fieis aos fatos mais importantes de sua vida privada e profissional, mas com a liberdade lúdica que o teatro pede”, disseram os dramaturgos. Confesso ser de extrema importância este cuidado.
Eu não sabia tanto sobre a sua vida pessoal. Ainda não tinha lido as biografias, o que ele sofreu no seio familiar por sua homossexualidade, por exemplo. Sabe, o pior que os anos passam e até hoje ainda sabemos de casos como esse. Que mundo cíclico e boçal, posso dizer que mofado também!
Não tinha ciência que Ney e Mauro Rasi, um dos maiores dramaturgos brasileiros, andaram na mesma direção e no mesmo tempo. Eles à procura da arte, ou posso dizer da aceitação da arte que batia a porta deles, no mesmo tempo. Ambos são imensos, cada um da sua forma.
A dramaturgia desnuda muitos fatos da vida do artista em questão.
Fran Barros e Tulio Pezzoni assinam o desenho de luz, que achei lindíssimo, uma potência. Se no palco tínhamos Renan com o visagismo forte, na primeira cena, um tom rosa é bem-posto, provocando um equilíbrio admirável, assim como em outras cenas que irei mencionar nos trabalhos desses profissionais.
O cenário também foi bem desenhado, pois auxilia no dinamismo do espetáculo. Fernanda Chamma lembrou a obra que trouxe Jackson do Pandeiro, que também dava espaço com maior visibilidade para os artistas em alguns momentos, evidencia quem deve ser evidenciado em algumas cenas, altos e baixos, por meio de pontes feitas em madeira. Excelente trabalho!
Os figurinos de Michelly X também não contradizem as indumentários do Ney em seus shows, foi de excelência. Não tem um apontamento que não seja positivo. As franjas e penas do lendário artista estão ótimas e bem representadas no palco!
A cena de Cazuza, por exemplo: tanto o visagismo quanto o figurino também estão de acordo com que vi um dia.
O artista que deu vida ao saudoso Cazuza tem uma voz que também traz veracidade ao poeta, que cantou lindamente “Blues da Piedade”. Vinícius Loyola está bem nas cenas. Nesse momento, lembramos das loucuras do artista, as drogas, seu jeito livre de ser. E, infelizmente, a AIDS, que levou tanta gente boa embora. Este foi um dos momentos mais difíceis para a comunidade LGBTQI+: a religião, que deveria acolher, culpou essas pessoas friamente, posso dizer cruelmente.
Hoje, o SUS, de mãos dadas com a ciência, têm salvado vidas, com medicações que tratam a todos os que contraem o vírus. Poxa, essa medicação poderia ter chegado um pouquinho antes! Afinal, Cazuza e Renato Russo, entre muitos outros, estariam nos contando suas próprias histórias.
Num dado momento, "Poema" é trazido aos nossos ouvidos. Aliás, uma das músicas mais lindas interpretadas por Ney.
“Poema" é uma canção que diz literalmente isso: um poema que o cantor Cazuza escreveu para sua avó, aos 17 anos. Muita gente sabe que Cazuza escrevia letras e poemas desde criança.
Lucinha pediu para que Frejat compusesse uma música com base naquele poema. Juntos, decidiram que a faixa ficaria incrível na voz de Ney Matogrosso. E é claro que o cantor topou!
"De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás."
Não posso deixar de mencionar a canção “Pro dia Nascer Feliz”, que simplesmente deu ao Barão Vermelho a fama ao ser cantada pelo público no Rock In Rio I. Li, em um livro sobre o rock dos anos 80, que o Canecão, casa de espetáculos, também explodiu com a canção. Ney tem grande importância na história do nosso rock, já que a banda RPM também contou com esse acolhimento do artista.
O artista dirigiu um dos shows de Cazuza durante o enfrentamento do HIV.
Ney, até os dias atuais, abraça novos artistas. Isso é lindo, sensível e futurista!
Ney é, sim, para além do tempo dele. Com uma calça jeans e camisa de malha é visto andando no Leblon com uma simplicidade ímpar. E a indumentária da peça remete a isso. Quando Ney não está no palco, é como um de nós. Menos magneticamente andrógeno.
Não podemos deixar de falar também que o artista canta Carmem Miranda, canta samba, ele é um desaguar de ritmos.
A trajetória o cantor, a forma que sua professora de teatro reconheceu o corpo de Ney, que transcende até os dias atuais, dono do palco, um senhor artista.
Luhli foi conhecida por apresentar Ney Matogrosso aos Secos e Molhados, possibilitando, assim, a formação clássica do grupo. Daí, a estrela brilhou.
Ney Matogrosso é um brasileiro de tanta força, tanta poesia, tanta beleza, que muitas vezes penso: será que merecermos um artista desse tamanho? Que cantava o sertão, o amor, a vida, como ele o faz?
Ainda há tempo: desperta América do Sul!
Ney é atemporal. Em 2023, em plena guerra, onde crianças palestinas e israelenses morrem, ouço Rosa de Hiroshima.
“A Rosa de Hiroshima é um poema escrito pelo cantor e compositor Vinicius de Moraes. Recebeu esse nome como um protesto sobre as explosões de bombas atômicas ocorridas na cidade de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial. Criada em 1946, a composição foi primeiro publicada no livro 'Antologia Poética'. Mais tarde, em 1973, os versos foram musicados e ganharam corpo na voz do grupo Secos e Molhados.”
"Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas."
Penso que o teatro é imenso exatamente por isso: conta histórias que não devem ser caladas. Penso também que os líderes mundiais podem esquecer um pouco as teorias harvardianas e escutar mais Ney Matogrosso.
Também não sabia que Claudio Tovar passou pela vida do Ney. Ele é um dos nomes do Dzi Croquetes, grupo de atores/bailarinos que se tornou símbolo da contracultura ao confrontar a ditadura usando a ironia e a inteligência. Os espetáculos revolucionaram os palcos com performances de homens com barba cultivada e pernas cabeludas, que contrastavam com sapatos de salto alto e roupas femininas. O grupo se tornou um enorme mito na cena teatral brasileira nos anos 70.
Ney é considerado pela revista Rolling Stone como a terceira maior voz brasileira de todos os tempos. Segundo a mesma publicação, é o trigésimo primeiro maior artista brasileiro de todos os tempos.
O qua falar desse musical? Uma peça que entendeu toda a poesia do artista Ney Matogrosso, que trouxe sua “irmã gêmea” Rita Lee, uma compreensão bela que ambos os artistas beberam da mesma fonte, da liberdade de ser, fazer e sentir. Da iluminação à escolha dos artistas, das canções como “Homem com H”, “O Vira”, “Balada do Louco”, entre tantas outras. Uma direção que entendeu a magnitude de um cantor cujos compositores sonhavam em ter suas canções gravadas por essa voz, que entendeu a importância do corpo do Renan para ser preparado para esta obra. Entendeu como trazer a homossexualidade sem vulgaridade, com cenas que demandam sutileza. A forma exótica do artista não foi desrespeitada. Havia um excelente coro musical para as canções. As histórias chegaram, a dramaturgia não a condenou a um fiasco sem entendimento, foram cronologicamente contadas. Entenderam o Ney, mergulharam nele! Souberam como trazer ao palco um artista potente, mas com a alma leve, que voa alto e plaina com a ajuda da brisa em nós, através de um tom de voz que invade a alma. Fazer teatro é isso: buscar a perfeição, chegar perto do público. É querer trazer a verdade e, principalmente, fazer com que os espectadores acreditem em tudo levado para o palco. Falar de Ney é falar de acordes expressivos da vida, é viajar em sua voz, na docilidade e também na rigidez quanto às opiniões, é ser cativo de um andrógeno e, ao mesmo tempo, entender que existe uma razão latente e lógica nele: o que pode ser loucura para um, para outro é a mais pura sensatez. É ser lúdico e, ao mesmo tempo, ir contra as mazelas dos homens. É tecer uma boa colcha de retalhos, ajeitá-la nos ombros e colocar o bloco na rua, altivo como um pavão misterioso.
O teatro me trouxe melodia formosa, uma atuação belíssima, bem copiada de um artista que levo no coração e na alma, onde as reações pulsam em uma direção além do que deveria ser compreensível. Porque Ney é isso: não foi criado para ser entendido, mas apreciado, adorado e alcançado pelos propósitos que estão longe da vaidade, mas próximo ao infinito. Ney jamais será apagado!
O espetáculo está de parabéns! Afinal, no Rio de Janeiro, esgotar bilheteria não é uma missão muito fácil. Ao alcançar este objetivo, parece que escutamos uma boa risada de Ney e Renan!
Sinopse
O musical chega para apresentar ao público essa figura tão importante para a nossa cultura, “algo obrigatório para qualquer brasileiro”, como considera Toledo. “A discografia de Ney Matogrosso passeia pelos compositores mais importantes do nosso país, o que reflete a nossa história. E sua história de vida é extremamente interessante. Ele sempre foi um homem absolutamente autêntico. Experimentou e ousou como nenhum outro artista, enfrentando os militares de peito aberto e nu, literalmente”.
A montagem Ney Matogrosso – Homem com H explora momentos e canções marcantes na trajetória do cantor sem seguir necessariamente uma ordem cronológica. A história começa em um show do Secos & Molhados, em plena ditadura militar, quando uma pessoa da plateia o xinga de “viado”. Essa cena se funde com momentos da infância e adolescência do artista. E, dessa forma, outros episódios vão se encadeando na cena.
Ficha Técnica
Texto: Marilia Toledo e Emílio Boechat
Direção: Fernanda Chamma e Marilia Toledo
Coreografia: Fernanda Chamma
Direção Musical: Daniel Rocha
Cenografia: Carmem Guerra
Figurinos: Michelly X
Visagismo: Edgar Cardoso
Desenho de som: Eduardo Pinheiro
Desenho de luz: Fran Barros & Tulio Pezzoni
Preparação vocal: Andréia Vitfer
Realização: Paris Cultural
Produção Geral: Paris Cultural
Elenco por ordem alfabética:
Bruno Boer – Cover Ney Matogrosso
Fábio Lima – Ensemble
Giselle Lima – Beíta
Hellen de Castro – Rita Lee
Ju Romano – Regina Chaves
Enrico Verta– Gérson Conrad
Ivan Parente – Moracy do Val
Maria Clara Manesco – Luli
Maurício Reducino – Ensemble
Murilo Armacollo – Ney Jovem
Renan Mattos – Ney Matogrosso
Tatiana Toyota – Elvira
Vinícius Loyola - Cazuza
Vitor Vieira – Matto Grosso
Yudchi – Vicente Pereira
SERVIÇO
Ney Matogrosso - Homem com H
Teatro Prudential
Data: 12 a 21 de outubro | Quinta a Sábado às 15h,
Quinta, Sexta e Sábado às 20h – Sábado e domingo às 20h
Duração: 3h com intervalo de 15 minutos
CLASSIFICAÇÃO: 14 anos