O carnaval chega ao fim e as próximas semanas prometem grandes emoções. O ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, alvo cada vez mais vulnerável das investigações que apontam sua participação direta em possível articulação de um golpe de Estado, está convocando um grade ato em São Paulo e demais capitais para o próximo final de semana, objetivando mostrar às autoridades que ainda possui popularidade e força nas ruas. Por outro lado, o inquérito das Milícias Digitais, encabeçado por Alexandre de Moraes, Ministro da Suprema Corte, tem apontado com contundência para a participação da família Bolsonaro em uma possível articulação de golpe, o que pode resultar em mandados de busca e apreensão ou até pedidos de prisão direcionados aos membros do clã. Em síntese, a instabilidade política brasileira segue sem data para acabar.
Seja como for, a realidade brasileira impõe nesse momento um conjunto de reflexões, mas talvez a mais importante seja sobre o papel que tem exercido o STF e a justiça como um todo.
Pesquisa recente do Instituto AtlasIntel, realizada entre os dias 6 e 9 de fevereiro, aponta que entre 51% e 56% consideram péssima a atuação da Corte em situações de extrema relevância, como o combate à corrupção, imparcialidade nas decisões e a atuação na defesa da democracia. Em 12 (doze) meses, a avaliação dos que confiavam no STF caiu de 45% para 42%, enquanto a desconfiança na Corte foi de 44% para 51% no mesmo período. A nítida corrosão da avaliação popular em relação ao Supremo faz ligar um alerta importante quando a credibilidade da mais alta Corte do país e nos obriga a produção de reflexões profundas quanto às causas e efeitos desse processo.
Não é de agora que experimentamos a “judicialização” da política ou, porque não dizer, da vida. A centralidade da justiça se deu na medida em que a política foi se enfraquecendo e perdendo justamente as suas capacidades centrais: as de se fazer política. Decisões que deveriam ser tomadas a partir de negociações ou dentro dos limites do legislativo ou executivo, passaram cada vez mais a ocupar os gabinetes dos togados que, vertiginosamente, foram empoderados em função da deprimente qualidade da nossa classe política. A ascensão dos “Deuses da Justiça” se deve, em grande medida, ao fracasso da nossa política. Poderíamos abordar aqui também as fragilidades da nossa Constituição de 88 e refletir sobre sua confecção num período posterior ao regime militar, sendo ela carregada de um espírito temeroso de que forças ocultas tornassem a se apossar do executivo, o que em grande medida resultou em um conjunto de legislações que, ao invés de trazerem equidade entre os poderes, tornaram o executivo refém do legislativo e judiciário, drenando a eficácia na execução de políticas públicas e enfraquecendo a própria democracia ao reduzir prerrogativas dos mandatários eleitos pelo foto direto e popular.
Feita essa breve análise, tomaremos por base o comportamento da Suprema Corte brasileira nos últimos dez anos, em algumas situações emblemáticas, como a Operação Lava-Jato, o Impeachment da Presidenta Dilma e, mais recentemente, os inquéritos das Fake News e Milícias Digitais, já inerentes a investigações no período Bolsonaro, para entendermos – ou tentarmos – o comportamento dos togados no que se propõe ao fazer justiça ou fazer política, título desse artigo.
Em idos de 2014, quando foi deflagrada a Operação Lava-Jato pelo Ministério Público Federal do Estado do Paraná, rapidamente a imprensa nacional abraçou as investigações e inundou rádios, TVs e as redes sociais com informações quase instantâneas sobre os casos, emitindo opiniões fortes contra investigados e criando uma maré de insatisfação popular contra o governo. Com grande dificuldade, Dilma se reelegeu, mas o cenário para a tragédia já estava armado. Sob as lentes do STF, várias arbitrariedades da Operação foram realizadas, principalmente no que diz respeito a estreita relação entre acusadores (MP Federal do Paraná) e o Juiz da Vara de Curitiba, Sérgio Moro. Fatos ocorridos em outros Estados da Federação, de competência de outras varas ou situações envolvendo agentes com foro, foram julgadas sumariamente pelo tribunal de Curitiba, debaixo dos olhos de um STF que, naquele momento, convergia claramente seus julgamentos em acordo com a opinião popular em detrimento dos ditames legais. Ironias à parte, um dos maiores advogados a denunciar os desmandos do STF, Cristiano Zanin – advogado de Lula à época – hoje ocupa uma cadeira na Suprema Corte.
No mesmo período, o Brasil experimentou a abertura de um processo de impeachment contra Dilma. A justificativa dos parlamentares a ingressar com a ação seriam “Pedaladas Fiscais”, operações de crédito feitas de forma irregular pelo governo federal, o que segundo tais parlamentares, violaria a Lei de Responsabilidade Fiscal, falseando a real saúde financeira do governo. O processo foi altamente controverso, tendo o governo por diversas vezes comprovado que atrasos de repasse aos bancos para pagamentos de benefícios não constituíram “pedaladas” em virtude de outras operações de crédito de compensação e que a LRF jamais foi violada. À época, a Advocacia Geral da União protocolou inúmeros recursos junto ao STF, assim como Partidos da base do Governo, solicitando a suspenção ou não admissão do processo nas bases da denúncia efetuada, o que foi ignorado pela corte no período, tendo a admissibilidade prosseguido nas casas legislativas, culminando com a deposição de Dilma.
Naquele mesmo ano de 2016, a imprensa vazaria uma conversa ocorrida entre Romero Jucá, que se tornaria Ministro de Temer, com Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro. Na conversa Jucá diz a Machado que “seria necessária uma mudança no governo federal para estancar a sangria” e que “seria construído um grande acordo nacional com o Supremo e com tudo”. Apesar da gravidade da frase, o STF jamais abriu inquérito de ofício para investigar o fato que aos poucos foi sendo abafado até se tornar mais uma das inexplicáveis histórias do impeachment.
Em 10 de fevereiro de 2022, o Ministro do STF Luís Roberto Barroso, em artigo publicado na revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), afirmou em determinado trecho que as “Pedaladas Fiscais” teriam sido tão somente a justificativa formal encontrada pelos parlamentares para retirar Dilma, mas que em sua visão, sua queda teria decorrido da falta de sustentação política. Diante de tal afirmação, poderíamos supor haver no STF naquele período algum consenso quanto a esse tema? Se havia esse entendimento, porque então não foram acatados os pedidos de suspensão do processo mediante o suposto crime apresentado? Muitas perguntas e poucas respostas.
Mais recentemente, já na esteira do governo Bolsonaro, identificamos um STF ainda mais atuante e contundente nas ações, chegando a instaurar inquéritos investigatórios de ofício, à revelia da Procuradoria-Geral da República. Sob o mando de Alexandre de Moraes, a Polícia Federal, órgão do Poder Executivo (diga-se de passagem), tem deflagrado inúmeras operações visando os envolvidos nos atos ocorridos em janeiro de 2023, sub a alegação de que à época se pretendia um golpe contra as instituições de Estado. Só para não deixar passar, nesse exato momento a Polícia Federal está sob o controle direto de um ex-ministro da Suprema Corte, recentemente nomeado por Lula para o cargo de Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. Coincidência? Reconhecimento de Lula às capacidades de Lewandowski? Submissão do executivo a algum acordo com a corporação conhecida como STF? Talvez demore a sabermos os meandros dessa história.
O que nos importa aqui, independente de qualquer juízo de valor, é trazer fatos à luz sob uma articulação narrativa que nos permita pensar para além do óbvio ou daquilo que a grande imprensa tenta imprimir.
Hoje já está mais que vidente que, desde 2013, o Brasil vem sofrendo um processo de desestabilização política. Das manifestações de julho de 13 ao “impeachment” de 16, nota-se uma ampla articulação de setores que visavam a deposição do governo do período. Vários juristas inclusive concordam que, por terem sido as “Pedaladas Fiscais” uma justificativa infundada, uma falsificação, o que se deu no período foi sim um golpe de Estado. E onde estava ou como atuou o STF na época? Bom, como vimos, anuiu com as circunstâncias e subscreveu a deposição de uma presidenta eleita.
Nesse momento, movido talvez pela sensação de que suas práticas de poder tenham sido questionadas ou até ameaçadas, o mesmo STF incorre em duvidosas práticas jurídicas no claro intuito de garantir aquilo que alcançou com o fracasso e enfraquecimento da política: a hegemonia no comando dos destinos do Brasil.
O período que atravessamos é extremamente delicado. Precisamos sim investigar aqueles que ameaçam a democracia, mas para isso não deve ser imperativa a constituição de uma ditadura ou de um Estado excepcional que confira a poucos cidadãos não-eleitos através do voto popular, poderes plenos para decidir o que é certo ou errado, o que é justiça ou o que é política.