Há duas semanas, falávamos um pouco da má vontade dos porta-vozes do mercado financeiro com o novo ministro da Fazenda do governo Lula, Fernando Haddad. O tal do mercado financeiro – farialimers, “turma da bufunfa”, ou como mais se pode querer chamá-los – aparentemente vai seguir se movendo em um processo de pressão permanente sobre o atual governo, usando o seu poder financeiro. A ação do Banco Central, neste momento independente, se move com os mesmos interesses que a turma do mercado financeiro. Isso está claro.
Também estava clara, pelas palavras do presidente eleito e empossado Lula, inclusive no seu discurso de posse, a chamada "estupidez do teto de gastos", e que este não poderia seguir adiante. A isso se somou inclusive a “PEC da Transição”, aprovada pelo Congresso ainda em dezembro, apontando para um déficit superior a R$ 230 bilhões no orçamento do ano seguinte (2023, o ano em curso) para fazer frente a despesas sociais, algo superior a 2% do PIB, e que poderia servir para ampliar a demanda e alavancar uma retomada da economia brasileira. Evidentemente, lei aprovada, imediatamente já considerada nos cálculos do mercado financeiro. Este era o jogo jogado até aqui. O debate era sobre o aumento do mínimo, uma sinalização importante não apenas para as camadas mais pobres da população brasileira, como também um sinal importante dos rumos estratégicos para a economia, tentando distribuir renda e ampliar o consumo popular, o que poderia servir para indicar aos produtores de bens para esses setores (alimentos, bens de consumo não-duráveis) a possibilidade de ampliação da produção e do investimento.
Eis que, às vésperas de sua ida para o Fórum de Davos, na Suíça, o ministro Haddad anuncia um pacote “fiscalista” na contramão do que estava apontado (e aprovado) até aqui. Um pacote que parece evidentemente uma concessão aos interesses do mercado financeiro, concessão esta com a qual até o próprio mercado talvez já não contasse mais, a esta altura. Um pacote, é verdade, centrado em uma tentativa de ampliação de receitas, mas também com corte de despesas, também da ordem de pouco mais de 2% do PIB até o fim de 2023, visando reequilibrar o orçamento. Ou seja, esvai-se em um conjunto de medidas o incentivo de crescimento da economia brasileira em 2023. E isso em uma conjuntura de desaceleração simultânea da economia brasileira e da economia internacional, esta última já apontada por vários analistas e agências.
Sem entrar em uma avaliação de conteúdo das medidas (várias delas louváveis do ponto de vista qualitativo, revendo isenções tributárias e redefinindo discussões de dívidas tributárias), o fato é que do ponto de vista macroeconômico, é retirada demanda da economia em um momento em que ela precisa de demanda na veia. As medidas se voltam para uma lógica de ajuste, lógica que comanda a economia brasileira ao menos desde a tentativa estabanada de ajuste por Joaquim Levy, ainda no governo Dilma, passando pelos governos que se seguiram, jogando para o chão a arrecadação, desequilibrando de fato o orçamento e, mais grave de tudo, colocando o país em uma trajetória de recessão e estagnação desde então, que agrava a situação de desemprego e miséria da população.
Mais grave, a essas ações “fiscalistas” agora apontadas, não deve corresponder uma mudança de rumos por parte do Banco Central, que deve seguir mantendo os juros reais muito elevados. Ou seja, o pior dos mundos: sem renda, as famílias não ampliam seu consumo, com juros altos, o setor produtivo não investe, o governo não gasta para ativar a economia, e no setor externo… crise. De onde virá a demanda para ativar a economia brasileira?
Talvez mais grave ainda, essa conjuntura econômica desconfortável se dará em um ambiente político onde a disputa com as forças do bolsonarismo mais radical continua embalada por atitudes destrutivas que não cessam. Uma crise econômica pode desanimar exatamente o setor popular mais empobrecido que deu a vitória a Lula, em um momento em que o governo precisa mais desse apoio. O que, se for adiante, será análogo ao quadro de 2015, onde o setor que deu a vitória à Dilma na eleição de 2014 desanimou, face à política recessiva e fiscalista de Joaquim Levy como ministro da Fazenda.
Ou seja, a disputa nesse momento não diz respeito apenas à trajetória econômica, mas pode influenciar fundamentalmente a disputa política mais profunda, que coloca em risco a própria democracia brasileira, que segue ameaçada. Ceder totalmente aos desejos do mercado financeiro pode representar um enorme desgaste para o atual governo, em um momento em que manter a base de apoio amalgamada no processo eleitoral se mostra o ponto mais fundamental para poder se estabilizar politicamente e seguir adiante.
E, finalmente, sempre haverá quem possa dizer, do ponto de vista da condução da gestão econômica: se é para fazer o que vinha sendo feito, para que sinalizar mudança? Os fiscalistas de plantão que tinham o timão da condução da economia até o mês passado talvez soubessem seguir bem nesse rumo. Só que seguiam com o samba de uma nota só, não sabiam fazer nada diferente disso. A maioria sinalizou que quer mudanças. Então, é hora de mudar. Também na economia. Também na gestão macroeconômica, é fundamental apontar um rumo diferente, e valorizar o cartaz que poderia ser colocado na porta do ministério da Fazenda: “Agora, sob nova direção”.