No texto "Chacina na Pandemia", o professor Adair Rocha, autor do livro "Cidade Cerzida", tece importantes reflexões e questionamentos em relação ao ataque assassino à Favela do Jacarezinho. Em sua longa trajetória acadêmica, o professor tem dedicado especial atenção à força criativa dos territórios de favelas e periferias. (Por Álvaro Maciel)
Assim como a memória de nosso tempo já é inimaginável, mais ainda com o ataque assassino a uma expressão urbana da cidade multicêntrica, o território/favela do Jacarezinho.
Até hoje, na lembrança das inúmeras chacinas, a fotografia tirada por Zuenir Ventura, em Cidade Partida, a partir de Vigário Geral, era a maior.
O confronto de imagem foi feito com Cidade Cerzida, em que se expõe a singularidade do Rio de Janeiro, na imagem invertida do espelho que jorra as contradições da multicentralidade da cidade, com proximidade dos confrontantes, desde Leblon/Vidigal ao anel da Tijuca, como sabe o Borel.
Que imaginário é esse que traduz como "normal" o manifesto territorial das favelas; com 1/3 da população de nossa cidade, em condições econômicas e políticas com intervalo abissal entre acesso e direitos; e na violência que explicita a necessidade de segurança, que se reduz à polícia, com prioridade para a segurança do asfalto?
E isso, facilmente, transforma sintoma em causa, reforçando o imaginário da ESCRAVIZAÇÃO, ainda hoje. Senão, vejamos: o que torna "normal" a entrada dos capitães do mato, hoje com farda, na disputa econômica do mercado da venda de drogas, facilmente, identificado como milícias. Ainda no imaginário, pedagogicamente, produzido, trabalhadores do varejo desse mercado, logo identificados como "bandidos", cujos ataques são imediatamente identificados com uma das palavras de ordem da última campanha "bandido bom é bandido morto". Isso justifica a ação de "execução” desse contingente da população, negra, na sua maioria.
Esse é o texto e o contexto da chacina do Jacarezinho, em plena pandemia, apesar da determinação do STF que limita ação beligerante da polícia, nos territórios sufocados pela pandemia pela incompletude do poder público, prioritariamente, saúde.
Claro que nada disso ocorre, automaticamente. A conjuntura política apresenta parceria dos governos do Rio e do Brasil, que, por coincidência, se reuniram no dia anterior à chacina, que rezava também a presença do atual ministro da Saúde, depondo na CPI. Pode-se concluir que o caminho livre para a ação miliciana para gerar o fato que desfocaria a mídia apenas da cobertura da pauta citada. Deus não nos permita imaginar o que poderia ocorrer, quando, finalmente, ocorrer o depoimento de Pazzuelo.
Infelizmente, estamos submetidos à lógica da destruição, simbolizada na morte de Paulo Gustavo e em mais de quatro mil mortes, cada uma com nome e sobrenome e a rotina das chacinas no território das Favelas.
Só uma ação conjunta da sociedade e as instituições pode parar esse pesadelo.