O grande evento na mídia dos EUA e da Europa desde o final do ano passado é a possibilidade de um “aquecimento” do conflito entre Rússia e Ucrânia, com uma eventual invasão da Ucrânia por tropas russas. O conflito se estende desde que um governo ucraniano mais próximo dos russos foi “apeado” do poder e sucessivos governos anti-Rússia se sucederam na Ucrânia, com um crescimento da possibilidade de que a Ucrânia entrasse para a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aliança militar hegemonizada pelos EUA. Os russos temem que, se isso acontecer, mais mísseis dos EUA se alinhem ao longo de suas fronteiras, como aconteceu em outros países originados do desmembramento da antiga União Soviética (como os países bálticos, Letônia, Estônia e Lituânia), ou da antiga área de influência russa na Europa Oriental (como Romênia, Bulgária, República Checa e Polônia), aumentando o poder de fogo dos EUA contra a Rússia.
Assunto bastante complexo, em um momento em que avança rapidamente a conclusão do gasoduto entre a Rússia e a Alemanha pelo Mar do Norte. Nesse momento em que a Alemanha, com o novo governo empossado recentemente, busca acelerar a sua transição energética rumo a energias mais limpas, a conclusão e o funcionamento do gasoduto são fundamentais para abastecer a matriz energética alemã. Com a interpretação de que os “tambores da guerra” começavam a tocar, os alemães ficaram em uma posição pouco confortável, uma vez que ameaçaram não comprar gás russo caso a invasão se concretizasse. Em função disso, teriam que rever toda a sua estratégia energética – lembrando que a inflexão alemã em relação à antiga União Soviética, iniciada nos anos 1970 por governos social-democratas naquele país, visava exatamente atender as demandas de energia da economia alemã, escapando de interrupções de abastecimento ou escaladas de preços rotineiras pelas instabilidades políticas no Oriente Médio.
Do lado russo, a crise com a Ucrânia em meados da década anterior já tinha levado a sanções europeias e estadunidenses. Essa crise foi resultante de uma escalada de conflito e tensões permanentes no Leste e Norte da Ucrânia, onde se concentram populações de fala russa e mais próximas cultural e politicamente dos russos, além da autonomia da Crimeia (área que estava antes sob controle da Ucrânia, mas que sedia a frota russa no Mar Negro). Teve como consequência também uma aproximação mais orgânica entre Rússia e China, com uma agenda ampla e o estreitamento dos laços energéticos (leia-se, fornecimento de petróleo e gás) entre russos e chineses, com os russos fornecendo à China a energia àquela altura excedente pela redução das compras do lado europeu, em função das sanções. Uma virada que também não era pouca coisa, e que desarmava tensões históricas entre Rússia e China, países que compartilham enorme fronteira comum.
Ou seja, EUA, União Europeia, Rússia, OTAN e outros atores não estavam frente a uma crise qualquer, mas a uma conjuntura de crise de grandes proporções e consequências dramáticas para todos os envolvidos, resultando em mudanças geopolíticas estratégicas e que terão efeitos não apenas hoje, mas no futuro, além de uma agenda de definições importantes a serem tomadas por todos os lados.
No meio desse imbróglio de proporções ciclópicas, o presidente brasileiro Bolsonaro, tal qual um personagem perdido de um daqueles filmes engraçados de chefes de governo delirantes e desconectados dos acontecimentos em curso, surge em Moscou para uma visita. Bolsonaro anuncia algumas agendas que até poderiam ser importantes (aumento do comércio com os russos, garantia do abastecimento de fertilizantes para o agronegócio brasileiro, dos quais os russos são grandes fornecedores mundiais, estabelecimento de parcerias e fornecimento de tecnologia russa em cibersegurança), mas que devem ser problematizadas. Aumento do comércio e garantia de abastecimento de fertilizantes poderiam ser discutidos por ministros de Relações Exteriores, Agricultura ou Economia. Cibersegurança, também por ministros responsáveis pelo tema (isso supondo que existe confiança entre russos e brasileiros neste governo para o fornecimento de tecnologia russa no assunto ao governo brasileiro atual), e ambos os temas não necessitariam da “diplomacia presidencial”.
De fato, ao se aproximar a campanha eleitoral, Bolsonaro parece tentar escapar da pecha de isolamento mundial e de “pária”, que lhe ficou marcada desde a última reunião do G-20 e o desempenho com a questão climática. Nem que para isso tenha que cair em uma situação de extrema complicação, e que pode lhe render ainda mais isolamento junto aos governos ocidentais, em função de uma interpretação de aproximação com os russos em um momento desses. Nem que tenha que fazer discursos delirantes para a sua base ao explicar as saudações que teve que fazer aos heróis do Exército Vermelho em Moscou. Mas Bolsonaro tem uma forma própria de fazer política, está acuado e tenta se movimentar como pode.
Mas que é confuso, é.