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Crônica das enchentes

Por Luiz Antônio Simas, Historiador e Escritor

Em 04/04/2022 às 07:14:39

Vou fixar esse fio sobre chuvas na cidade do Rio, já que a coisa não para. Vivaldo Coaracy - primeiro sujeito que deve ser lido para se estudar a história da cidade - fala do espanto do Padre José de Anchieta com fortes chuvas que alagavam o Rio de Janeiro na década de 1570.

Vieira Fazenda, outro clássico, cita uma chuvarada que não saiu da memória da cidade durante muito tempo. Foi durante a invasão dos piratas franceses de Dugay-Trouin, que sequestrou a cidade (sim, a cidade toda) no meio do temporal. Isso foi em 1711.

A enchente de 1811 é talvez a mais lendária da cidade. Recebeu até nome: enchente das "Águas do monte". Morreu gente, desabou parte das muralhas da Fortaleza de S. Sebastião. D. João mandou abrirem todas as igrejas para acolher desabrigados. Parte do Morro do Castelo desabou.

Em 1864 os cariocas apelidaram outra enchente: foi a "chuva de pedra", com granizos e os cacetes. A cidade ficou debaixo d´água, casas caíram, igrejas foram destelhadas, bois boiavam. Machado de Assis, nascido em 1839, conta que nunca se esqueceu do dilúvio.

Vieira Fazenda cita uma enchente que acabou com uma procissão de quarta-feira de cinzar e destruiu a cidade em 1854. Fala de um dilúvio que em 1897 destruiu uma festa no Itamaraty e arrasou parte do centro.

Olavo Bilac fala, daquele jeitão dele, "das ruas transformadas em rios, as praças, mudadas em lagoas, os bondes metamorfoseados em gôndolas, - e homens e cachorros nadando, como peixes, pela vasta extensão das águas derramadas”. Isso foi em 1904, ano da reforma Passos.

Lima Barreto tem talvez a mais famosa crônica sobre enchentes na cidade, de 1915. Lima acusou Pereira Passos diretamente: "O prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.

Em 1906, parte dos morros da Gamboa, Santa Teresa e Santo Antônio foram arrasados pelas águas. O Mangue transbordou. Em 1924, parte do São Carlos veio abaixo. Marques Rebelo citou enchentes bíblicas em suas crônicas.

Em janeiro de 66 uma enchente deixou mais de 250 mortos e 50 mil desabrigados. Em janeiro de 67 ocorreu o deslizamento em Laranjeiras que arrasou uma casa e dois edifícios e matou mais de 200. A família de Paulinho Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues e Mário Filho, morreu.

A enchente de fevereiro de 88 deixou 289 mortos e quase 30 mil desabrigados. Os desfiles das campeãs foi cancelado na Sapucaí. A lista é infinda.

A cidade do Rio foi fundada lutando contra a natureza. Foi arrasando morros, drenando pântanos, aterrando mangues, a baía, lagoas e praias, que chegamos até aqui; O fato é citado por cronistas e viajantes desde o século XVI.

Tempestades são inevitáveis. Alterações no clima podem apenas piorar o que é comum desde os tupinambás e piorou com a urbanização descacetada. O descaso com o poder público, exceções confirmam a regra, só piora.

Para quem quiser saber mais, sugiro Vivaldo Coaracy: Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Vieira Fazenda tem o clássico Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Do Marques Rebelo, O Trapicheiro fala das chuvas. "As enchentes", crônica do Lima Barreto, tá na rede.

As crônicas cariocas do Machado, a chuva aparece aqui e ali, estão reunidas em "A Semana". Andréa Casa Nova Maia tem o artigo "Memórias de Rio de Janeiro inundado em relatos de cronistas e literatos" publicado nos anais do XXVII Simpósio Nacional de História.

J. Carlos caricaturou diversas enchentes. No livro O Vidente Míope, que escrevi sobre a obra dele, com organização de imagens do Cássio Loredano, falo sobre isso.

Moreira da Silva gravou Cidade Lagoa, de Cícero Nunes e Sebastião Fonseca, em 1959:

Esta cidade, que ainda é maravilhosa

(...)

Desde os tempos da vovó

Tem um problema, crônico renitente,

Qualquer chuva causa enchente,

Não precisa ser toró.

Reprodução YouTube

Um detalhe curioso: Ari Barroso ficou preso em casa por causa de uma enchente, em 1939. Indignado porque não poderia ir ao bar, Ari resolveu relaxar ao piano. Enquanto a cidade desabava, surgia simplesmente Aquarela do Brasil.

Imagino que se fosse hoje, Ari não teria composto o samba imortal. Provavelmente ele passaria a chuvarada toda nas redes socias, como a gente, ao invés de ir para o piano. Coisa de tempos doidos como o nosso.

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