O poeta e dramaturgo andaluz Federico Garcia Lorca, em uma conferência, falou sobre o termo “duende”, que pode tanto referir à criatura fantástica, quanto a certa graça, ou encanto, experienciada, de acordo com seus exemplos, na arte do flamenco. Ao duende, Lorca contrapõe “anjos e musas”, quer dizer, parte de uma tradição europeia religiosa, artística e filosófica.
Ao flamenco é atribuído um caráter artístico deslocado da beleza, da medida, da sensatez. É interessante que, no mesmo texto, Lorca menciona um concurso de dança, em terras andaluzas, no qual havia muitos moços e moças, magros, lindos e sorridentes. O prêmio, no entanto, é dado a uma “vieja de ochenta años” que tinha, justamente, “duende”.
É nas artes cênicas, as que tem “un cuerpo vivo”, que o duende se faz presente mais frequentemente. Música, dança, poesia falada. Sempre um corpo vivo diante de outros corpos vivos: formas que “nacen y mueren de modo perpetuo y alzan sus contornos sobre un presente exacto”.
Essas formas aparecem, em suas palavras, na Espanha, mais do que na Itália e na Alemanha, pela relação peculiar que seu país mantém com a morte. Em todos os países a morte é um fim. “En España, no”. Ao invés de se fecharem as cortinas, expõem o morto ao sol. Acredito que, para além da morte física e do luto (evidentes na poesia cantada e falada na Andaluzia e nas regiões onde o flamenco impera), Lorca também está se referindo à morte das formas, essas que nascem e morrem na frente dos corpos vivos. São metamorfoses.
Metamorfoses
O Sesc Copacabana acaba de estrear o espetáculo “Sirena”, no qual Ivna Messina transforma a dança flamenca por meio da dança contemporânea. Para isso, ela se utiliza de certos mitos antigos da cultura mediterrânea, como a sereia, o fauno, a harpia e a medusa, quer dizer, seres híbridos, entre animal e humano: metamorfoses de um corpo vivo em cena.
A sala multiuso e o mezanino do Sesc Copa estão no imaginário do espectador como terrenos de experimentos e pesquisas cênicas. É fundamental que os artistas possam abrir suas experimentações porque cada espetáculo não está isolado, mas é um posicionamento enunciativo dentro de uma trajetória de pesquisa nas artes da cena. “Sirena” traz um corpo que experimenta uma quebra com a ideia de unidade e medida, um corpo que busca menos a beleza e, talvez, mais uma espécie de “duende”.
O espectador entra na sala numa grande penumbra, o que o força a colocar a atenção em um lugar menos cotidiano. No chão, há um amálgama de tecidos e, provavelmente, o corpo da bailarina. Um sapato deve estar em uma das mãos, outro num pé, mas há um corpo estranho, nada apolíneo. Durante o acontecimento, a estrutura vai se metamorfoseando em cascos de pata de bode, em rabos de peixe, asas espraiadas, cabelos para o alto.
Assim como nas “Metamorfoses”, de Ovídio, a forma não permanece, não se fixa, não oferece descanso ao espectador. Se lá na Roma Antiga, Ovídio apreendeu, em palavras, o momento da transformação física de alguns seres humanos em animais e minerais, ele pensava o poder dos deuses de manipular e transformar as pessoas. Atualmente, temos novos deuses que nos manipulam e nos obrigam a nos transformar em seres outros que não aqueles que acreditávamos ser. O corpo metamorfoseado no Sesc Copacabana, visto pelo espectador, não é essencialmente animalesco, mas um corpo violentado e manipulado. Alguns fragmentos merecem destaque, vejamos. Dividi, por minha conta, a cena em “blocos”, que me ajudaram a organizar as ideias.
Bata de cola
A bata de cola tem estado menos presente em exibições de dança que se referem ao flamenco. Vejo muitas saias sem cauda e, frequentemente, a ausência da saia. Esta não é uma saia qualquer: a bata de cola lambe o chão, pesa, requer outro centro de gravidade. É recorrente que, quando se pensa um figurino para um espetáculo de dança, a escolha do material e da modelagem permita todo e qualquer movimento, como se o figurino fosse um serviço prestado ao artista em cena.
Entretanto, quando dava aula de teatro no Departamento de Artes Corporais da UFRJ, pedi que os estudantes criassem células coreográficas a partir de peças de figurino que os desestabilizassem, que não permitissem muitos movimentos. Quando vejo a bata de cola, penso nesse redimensionamento do corpo a partir de uma peça de indumentária voluntariosa, que impõe algumas regras.
O que aparece em “Sirena” é uma luta com o material, uma negociação dançante com suas regras voluntariosas. O primeiro bloco tem como elemento material protagonista a cauda da saia. A cena começa com giros lentíssimos em torno do eixo, uma desconstrução dos frequentes giros flamencos. Resulta uma cerâmica no torno, uma verticalidade em formação, ou deformação. O cabelo cobre completamente o rosto e os dedos estalam como castanholas.
Dessa maneira, o espetáculo começa sob o signo da transfiguração. Não a famosa transfiguração bíblica, mas, talvez, seu negativo. Ao invés do Santo que brilha com a luz de Deus e tem o rosto humano modificado para o rosto divino, há, em “Sirena”, um corpo no espaço quase escuro, cujo rosto é velado pelos cabelos cacheados. Um corpo que vai se animalizando e não sublimando. O rosto (a figura) remete à saia de babados, o que está em cima não parece superior ao que está embaixo.
Estranhamentos
O figurino é construído em camadas. Peças-chave vão sendo retiradas à medida que mudam os blocos temáticos ou técnicos. A primeira camada é uma rede vermelha sobre um vestido azul escuro: sangue sobre o mar mediterrâneo. Essa rede voltará no último bloco, como um xale flamenco e, também, como grades de uma prisão.
Quando termina o (que estou chamando) primeiro bloco, penso: “muito cedo para retirar a saia, pode explorar ainda mais seus recursos”. Porém, o que vem em seguida é tão interessante que a esqueço. Com a saia despida, as pernas são reveladas sob uma calça de tecido atoalhado intensamente vermelho. Digo as pernas porque não se repara o tronco e membros superiores: o foco está nos pés e as pernas, no alto, desenvolvendo uma coreografia sobre as articulações, enquanto a boca produz estalos e complementa a trilha sonora.
O flamenco está ali, a dança contemporânea idem; mas o importante é a estranheza do movimento fragmentado nas articulações de pernas que flutuam sem que se veja realmente o tronco. A figura está desaparecida no chão, retirada do foco, misturada aos tecidos, ou coberta por eles. Todas as possibilidades de criação de sentido se dão pelos membros inferiores.
No período de um semestre vi três solos de dança contemporânea, incluindo este, em que o bailarino possui um grande volume têxtil e, se cobrindo inteiramente com essa peça disforme de tecido, despe-se de sua indumentária. Não sei se é uma tendência, mas todos os três foram bem sucedidos com essa proposta. O momento da troca de roupa é a oportunidade do espectador perder por completo a figura humana como objeto em cena e ganhar um amálgama informe de tecidos. Uma forma estranha, uma “coisa”, um alien.
No caso de “Sirena”, o efeito se relaciona com arquétipos femininos. A saia de babados, que esconde o corpo de Ivna, remete à concha. Quando ela se movimenta sob a saia e deixa um rastro de suor no linóleo preto, remete à lesma. Ali há o visco, a espuma, a secreção. Também sai de baixo dessa concha a calça vermelha, livre do corpo humano. Sai como um parto, ou um excremento.
É interessante notar, ainda, uma relação com o público que não se dá apenas pelo olhar presente de Ivna, mas também pelo toque físico. Em três momentos do acontecimento cênico, seus pés, ou o figurino despido, ou o cabelo, tocaram sutilmente os pés de algum espectador, que produziu um leve afastamento. Isso também é contracena.
Des-astro
No último bloco, o corpo de Ivna está coberto apenas por uma 2ª pele preta. Ela joga com as linhas do espaço, os braços retos em diagonal, fazem o olhar do espectador passar retilineamente da linha da sala para a linha de seus olhos de medusa.
A combinação dos giros e da iluminação lembra planetas, astros. Há um refletor branco sobre um refletor vermelho. As fontes de luz são perfeitamente redondas, como astros gravitando na atmosfera. Ivna produz giros sobre o eixo, muitos. O astro gravita, se relaciona por linhas tensas com outros astros. A civilização mediterrânea antiga não pode ser abordada fora dessa conexão com a física terrestre e planetária.
O contemporâneo, por outro lado, é constituído de muita destruição. Não apenas a desconstrução Moderna, mas os escombros. Tanto a desfiguração, quanto quedas arriscadas em espiral e, sobretudo, os momentos de contato com peças tradicionais do figurino flamenco trabalhadas de maneira “suja” e sem solenidade; tudo isso destitui esse equilíbrio astrológico Antigo.
Maurice Blanchot pensou o termo “desastre” como des-astre, des-astro, se desfazer da relação com o astro, aquele que gravita no centro, se desfazer do centro. O corpo de Ivna - sem figura e em queda – gira com velocidade sobre o eixo. Mas o eixo e o equilíbrio estão ali como o contrário da queda e da desfiguração. Os dois polos coabitam o espaço cênico. Ela mostra sua técnica flamenca, está ali, presente e bem construída, mas não permanece, dá lugar à queda e a retirada do eixo. Des-astro.
De volta ao animal
Para concluir, retorno ao hibridismo humano-animal. Num século XXI que já começa cansado da figura humana, a arte não apenas já desconstruiu de infinitas maneiras esse monumento, como vem tentando escutar os seres vivos que coabitam o planeta, tentando descer a outras alturas, experimentar outras texturas, formas de respiração, línguas e tantas outras instâncias que a arrogância humana considerou, por séculos, inferior. Há livros com eu-líricos plantas, há poemas que proferem o desejo de falar de bicho, qualquer um que não o homem.
“Sirena” joga com essas referências menos apolíneas, brinca de sair da medida, retirar a beleza e propor um corpo que, antes de ser aniquilado por algum deus poderoso, manipula a si mesmo, impondo-se violentas metamorfoses para, na transformação, tentar não ser capturado.
Ficha técnica
Bailarina, coreógrafa e concepção: Ivna Messina
Direção: Alexsandra Bertoli
Direção de arte, operação de som e fotografias: Farley José
Direção e composição musical: Letícia Malvares
Dramaturgismo: Thiara Pagani
Iluminação: Carla van den Bergen
Confecção de figurino e adereços cênicos: Farley José, Clésio Júnior e MiFlamenco Sevilla e Bergoña Cerbera
Operação de luz: Daniel Boone
Mixagem e edição de som: Luciano Camara
Flautas: Letícia Malvares
Guitarra flamenca: Luciano Camara
Percussão: Georgia Camara
Voz e Viola: Luiza Sales
Direção de produção: Ivna Messina
Realização: Isso não é Flamenco / sala Baila!
Apoio: sala Baila!, Cena Escola de Dança