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Tempo, espaço, gênero em “Sagração”: Companhia de Dança Deborah Colker no Thratro Municipal

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor de Dança do Departamento de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO

Em 24/03/2024 às 12:39:24

Em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a montagem “Sagração”, da Companhia Deborah Colker, recria o histórico balé “A Sagração da Primavera”. A partir do espetáculo ao qual assisti, escrevo sobre alguns termos e conceitos ali presentes: a neutralidade de gênero masculino/feminino e humano; o gesto antropofágico, a crisálida e sua relação com a memória e o futuro; a circularidade e o eixo no espaço cênico.

Gênero neutro x binarismo e figura humana

Antes de dar um apanhado histórico e compará-lo com a atualidade, é preciso apontar uma questão evidente na montagem em cartaz no Municipal: o trabalho sobre o corpo do artista-em-cena e suas conexões conceituais com o contemporâneo.

Duas versões bastante famosas desse balé, quais sejam, a de Maurice Béjart e a de Pina Bausch, tomam como base o corpo humano e, mais especificamente, o confronto entre o corpo do homem e o corpo da mulher. Ambos estavam em consonância com as questões da segunda metade do século XX. Ambos usam malhas e transparências que evidenciam os formatos dos corpos de seus bailarinos. Ambos dividem muito claramente o elenco masculino do feminino. Ambos mostram, em seus movimentos, a violência do masculino contra o feminino: em Béjart, quando as mulheres se dão conta de que o coletivo de homens se aproxima, elas se fecham coletivamente em um círculo, no qual, cada uma delas, se fecha sobre seu próprio corpo e os homens cercam circularmente esse amontoado de fêmeas; em Bausch, por sua vez, os homens escolhem uma mulher e, perturbadoramente, a cercam e essa fêmea é arremessada para o alto, “caindo” com o sexo na boca de um dos machos.

Na “Sagração” de Colker, o confronto entre masculino e feminino não tem a mesma evidência e, indo mais além, a questão não é nem mesmo mostrar a figura humana. O coletivo de bailarinos, em muitos momentos, tem corpos que remetem a insetos, a pássaros e outras formas animais e vegetais. Essa reunião de corpos está em consonância tanto com as urgentes questões ambientais, quanto com o não-binarismo de gênero: debates que estão na ordem do dia.

O espetáculo começa materializando um mundo “de baixo”, do chão – e isso remete ao início original de Stravinsky, que fala sobre a terra. A iluminação recorta o espaço cênico, reduzindo a área visível ao plano baixo, forçando os bailarinos a se locomoverem por meio de movimentos arrastados no chão e espirais sobre o próprio eixo na horizontal. Cotovelos e joelhos servem de apoio, tanto quanto o pé e a mão.

O figurino modifica os corpos humanos por meio de enchimentos assimétricos, tramas, redes e pinturas sobre 2ª pele. Eu teria escrito que essa indumentária “deforma” os corpos, se a questão fosse mostrar a figura humana, entretanto, como não se trata disso, é melhor dizer que ele “transforma” a estrutura física dos bailarinos. Me pareceu, para além das formas animais e vegetais, que essas texturas e, sobretudo, os enchimentos, resultam formas de órgãos humanos, como as torções do intestino, por exemplo.

Em relação ao corpo em cena, é preciso destacar, ainda, o elemento vermelho – já visto na versão de Pina Bausch -, redimensionado no corpo de Ana Lívia Santos. O vermelho na terra ganha, aqui, um corpo preto, atravessado pelas retas pontiagudas dos bastões de bambu. Ele funciona como o ponto de fuga para onde as linhas espaciais convergem, direcionando o olhar do espectador. Vamos voltar aos bambus adiante.

Massacre da primavera

Quando o mundo europeu sentia a vibração da Primeira Guerra Mundial, data que, de fato, divide o século XIX do XX, Stravinsky compõe uma música para os balés de Diaghilev que já se enquadra no novo tempo, como uma morte evidente das regras acadêmicas na arte e a putrefação do homem europeu oitocentista, orgulhoso de si. E, ao invés de trazer o tema do inverno, da decadência, traz a primavera e a violência do ato de nascer. Evidentemente, o nascimento não se faz sem morte e sacrifício e, enfim, eis o tema principal da 2ª parte da composição, qual seja, o feminino sacrificado.

Não é novidade que a música de Stravinsky e de seus parceiros de geração causou (causa ainda) incômodo por desconstruir o padrão de harmonia e ritmo. Na estreia, em Paris, o balé foi chamado de “massacre da primavera” e me parece muito boa a expressão. Tantas vezes movimentos artísticos de vanguarda, bem como movimentos sociais de minorias, se apropriaram de termos usados como insultos e os transformaram em armas para si mesmos. Apesar da intenção negativa original, “massacre” é um termo ótimo para uma obra que prevê todo um século violentíssimo, quebrando usos já desacreditados das técnicas e lugares artísticos. A primavera do século XX não poderia deixar de massacrar tudo e todos já em sua entrada em cena.

Na versão brasileira em cartaz, entramos em outra camada de desconstrução musical porque o que poderia ter sido tratado como um “clássico” é atravessado por sonoridades brasileiras e textos falados. Não há uma solenidade, como se a obra europeia fosse superior aos elementos da nossa cultura sul-americana. Colker trabalha o material deixado por Stravinsky, Diaghilev, Nijinsky, como o besouro que trabalha a terra.

Gesto antropofágico

O trabalho de desconstrução do solo dialoga com nosso Modernismo – e suas reverberações ao longo do século XX. É evidente a impossibilidade de se referir à arte brasileira de um século atrás apenas com reverência. Um distanciamento crítico é inevitável e muitos dos nossos criadores cênicos vem retrabalhando obras literárias e visuais que falam das propostas Modernistas.

O material que Colker tem nas mãos foi, na década de 1910, uma quebra de paradigmas, porém, como toda revolução, foi engolido pelo sistema e transformado em “monumento”. Uma brasileira diante de um monumento europeu me traz à memória o poema “A catedral de São Paulo”, de Mário de Andrade. Nele, o enunciador está diante de uma obra interminável (a Sé) que imita um monumento europeu que já tinha meio milênio: a catedral gótica. Diante desse esforço desesperado para se tornar uma metrópole reconhecida, é revelado, para o leitor, a indefinição da identidade do enunciador, bem como a indefinição da identidade nacional (objeto buscado pelos Modernistas).

A adição de elementos brasileiros à obra de Stravinsky/Diaghilev opera, também, reduções. Veja, a redução se dá no monumento, não há como adicionar um elemento contemporâneo e “suleado” sem sacrificar a matéria de um “clássico”. Trata-se de um gesto antropofágico, no sentido de se aproximar daquele gesto a que se fez alusão nos anos que se seguiram à Semana de 22: como os povos tupinambás escolhiam o melhor guerreiro inimigo para devorar, a Cia Deborah Colker pode escolher o que há de melhor na obra europeia de 1913 para absorver, colocar dentro do corpo, digerir, devolver como excremento e fazer brotar em solo brasileiro. A antropofagia já foi digerida pela geração Tropicalista e criticada, e desconstruída e reconstruída por outras gerações, como o Mangue Beat, nos anos 90. Não paramos de colocar em questão nossas catedrais.

Diedros: corpo no espaço aéreo

Nesse sentido, é preciso mencionar o uso do espaço aéreo como adição/redução na montagem de “Sagração”. O elemento cenográfico mais (re)trabalhado é o bastão de bambu. São longos bastões que sustentam os corpos dos bailarinos em diversos vetores no espaço da caixa cênica. Há quem corra sobre eles numa diagonal sustentada pelas costas humanas, há quem navegue uma jangada suspensa, há quem dance em suspenso segurando-se nesses bastões: tudo no espaço aéreo, acima do “plano alto”.

As linhas do bambu formam interseções no espaço tridimensional da cena, trazem nova dimensão para o balé original. Formam uma espécie de floresta art-déco, com direito a tempestade de retas diagonais, paralelas e perpendiculares. A Europa nos deu os diedros da geometria descritiva, indicando que por meio da representação bidimensional, podemos mostrar as dimensões de um objeto no espaço tridimensional. A “Sagração” brasileira traz o corpo humano, sujeito à lei da gravidade, no espaço aéreo dentro do diedro.

Para além do risco de queda e de choque com o material cenográfico (presente em todos os espetáculos da Cia), destaco um momento menos perigoso e com muita poesia. Os bailarinos constroem uma trama de bambus e a suspendem. Um deles se coloca em pé, sobre essa estrutura e navega esse barco flutuante. Em dado instante, ele “mergulha” na água abaixo de sua jangada e, com uma mudança de iluminação, todos os espectadores se sentem mergulhando e experienciando a vida aquática de um rio brasileiro. Essa cena me remeteu a uma cena “aquática” em “Tambours sur la digue”, montagem teatral do Théâtre du Soleil, na qual o espectador se sente debaixo d’água pelo tratamento espacial feito no palco.


Crisálida: memória, presente, perspectiva de futuro

Depois de ter trabalhado profundamente as possibilidades dos longos bambus em cena, os bailarinos, aos gritos, os arremessam no centro do palco, aparentemente de qualquer maneira. Cria-se um grande amontoado de bambus, que remete às imagens de desmatamento e escoamento de madeira nos rios brasileiros. Sobre essa imagem bastante material e bastante afetiva, desce uma rede do urdimento. Nela se instala um corpo larvário, que pode tanto ser uma lagarta num casulo, quanto um bebê dentro do útero: um corpo fragilíssimo que espera sua metamorfose. A espera é o atravessamento de tempos entre cena e história.

A lagarta, símbolo da transmutação, em suspenso no palco do Municipal, oferece algumas reflexões a respeito da crisálida. A metamorfose das borboletas e mariposas é tema de inúmeras obras artísticas e de análises críticas. Georges Didi-Huberman, por exemplo, menciona as falenas, mariposas de duração efêmera, que materializam a fragilidade das imagens. Elas aparecem na noite e se desmaterializam facilmente. São símbolos da rememoração e da fragilidade do saber, um saber que parece querer fixar, inutilmente, as imagens.

A lagarta de “Sagração” tira a precisão de tempo, não há presente sólido porque não há uma construção clara de passado, ou de perspectiva de futuro. Há pulsar, ritmar, há bater de asas. A crisálida (estágio intermediário entre a larva e seu imago, sua forma completa pós-metamorfose), para o espectador brasileiro é tanto bonita, quanto angustiante. Por um lado, é a bela metáfora da perspectiva de imagem-imago, de completude e voo para a liberdade (até desaparecer no céu). Por outro, é uma espera sufocante dentro de uma membrana, uma consciência da impossibilidade de completude e perfeição, uma vez que as palavras “completude” e “perfeição” – como toda a linguagem – vêm da colônia, vem de quem nos impôs a cultura.

Quando sair do silêncio da crisálida, vai poder falar, mas será uma língua estrangeira ao “céu”. Aqui, esse símbolo de efemeridade, se relaciona com a memória e sua névoa. Nosso país, que se constrói de memórias europeias e nativas, vem tentando aprender como lidar com seus apagamentos e suas metamorfoses que violentam tantos corpos; tanto os aqui nascem, quanto os que para cá imigraram.


Circularidade, eixo

De maneira geral, “todos” os desenhos de cena são, prioritariamente, centralizados. Os elementos cenográficos conduzem os bailarinos a realizarem movimentos coletivos em uma relação direta com o eixo virtual, no centro da cena. O próprio linóleo, colorido de inquietas pinceladas “van-goghianas” (ou “malfattianas”), forma uma enorme circularidade, como um turbilhão que suga tudo para o centro. As linhas do espaço, quase que a todo momento, se sentem atraídas por esse olho do furacão central.

A primeira e última cenas, nas quais um(a) feiticeiro(a) segura um bambu iluminado internamente, lembram o espectador que essa centralidade é mais forte do que todos os demais elementos espaciais. Essa criatura que instaura a magia mexe não apenas um caldeirão, mas todo o planeta, quiçá o universo.

Na divulgação do espetáculo, são mencionadas “origem, evolução e continuidade no planeta terra”. É incontornável falar de origem porque a obra original fala sobre nascimento e aniquilamento, mas, sobretudo, porque esse é um espetáculo de comemoração de três décadas de Companhia Deborah Colker. A origem do mundo dialoga diretamente com a origem dos trabalhos da Cia. E falar de origem é falar de volta às origens. Falar de volta é falar de retorno depois de muita estrada, quer dizer, um retorno já muito modificado.

Em literatura, fala-se sobre “bildungsroman”, o romance de formação, no qual o protagonista sofre agudas metamorfoses afetivas e sociais. Goethe, em “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”; Voltaire, em “Cândido”; Flaubert, em “A educação sentimental”; cada um historicamente a sua maneira constrói protagonistas que confrontam seriamente suas formações com a prática do mundo. São jovens europeus em conflito com os projetos de nação que lhes foram impostos. Uma formação “à brasileira” é ainda menos coesa, com menos chances de resolução no fim.

A Companhia Deborah Colker não é uma adolescente em formação, mas em sua juventude de 30 anos pode rever sua construção “pessoal”, em confronto com a formação interminável de um país como o Brasil.

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