Muitas vezes, em conferências, aulas ou debates, afirmei que há certas coisas que não precisam necessariamente servir a algum propósito ou cumprir função específica para que se tornem importantes. É o caso do amor, dos filhos e de chocolate: não têm que servir para nada. Já se bastam em si mesmos, independentemente de terem alguma serventia. Costumo usar essa alegoria para abordar a importância do ensino médio, em contraponto à visão que, com muita frequência, trata essa etapa de escolaridade sempre em referência a suas funções ditas principais: servir como período de desenvolvimento da formação profissional em nível técnico ou como fase propedêutica, ou seja, preparatória ao ensino superior.
Minha abordagem decorre da forma como tenho assimilado as inestimáveis contribuições de grandes autores da literatura educacional brasileira, que se dedicaram - e ainda se dedicam - à reflexão e à pesquisa sobre ensino médio no Brasil, tais como Gaudêncio Frigotto, Acácia Kuenzer, Celso Ferretti, Mônica Ribeiro da Silva, entre outros(as). Com efeito, o ato de pegar pela mão esses autores, como companheiros de caminhada, me ajudou a construir a convicção de que, antes de qualquer coisa, o ensino médio é uma etapa escolarizada da formação humana, destinada, quando cursada na idade regular, a adolescentes e jovens.
Logo, é cabível refletir sobre o que realmente importa na formação de adolescentes e jovens, fase da vida em que se intensificam, além da consolidação das aprendizagens construídas no ensino fundamental, o florescimento de vocações, a afirmação de princípios e valores, a irrupção de processos criativos, a emergência de atitudes insubordinadas, a elaboração do pensamento crítico-reflexivo, a busca por autonomia, o envolvimento em movimentos coletivos de diferentes teor e nível de organização, entre outras características que costumam marcar a adolescência e a juventude, embora também possam se fazer presentes em outros ciclos da vida.
Por isso, o debate sobre o currículo do ensino médio precisa levar em conta a especificidade desta etapa de escolaridade para a formação humana, antes de se concentrar na serventia do ensino médio, seja como formação profissionalizante, seja como ciclo de estudos preparatórios ao ensino superior, seja como subsídio à aprovação em exames ou concursos.
Vale ressaltar que, na forma da legislação educacional brasileira em vigor, especialmente nos termos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN nº 9.394/1996), o ensino médio é a etapa final da Educação Básica, após a educação infantil e o ensino fundamental, tripé que constitui aquele nível da educação nacional. Também nunca é demais lembrar que a Educação Básica, embora seja um nível de escolarização obrigatório, para crianças e adolescentes dos 4 aos 17 anos, conforme determinou a Emenda Constitucional nº 59/2009, ainda não teve todas as suas etapas declaradas obrigatórias por lei, à exceção do ensino fundamental, cujo caráter obrigatório está claramente insculpido no artigo 32 da LDBEN nº 9.394/1996, o que não ocorre com o ensino médio. Dito de outro modo, quando estão na faixa etária dos 4 aos 17 anos, as famílias são obrigadas a matricular seus filhos na educação básica, sob pena de infringir a lei, em pré-escolas, escolas de ensino fundamental ou escolas de ensino médio, a depender da idade e do nível de desenvolvimento demonstrado pelo aluno. A obrigatoriedade também recai sobre o Estado, que deve assegurar vagas para alunos daquela faixa etária, em caráter obrigatório, sob pena de responsabilização legal. Mas isso não quer dizer que as três etapas da Educação Básica sejam obrigatórias porque, repito, o instituto da obrigatoriedade alcança apenas o ensino fundamental.
No estado do Rio de Janeiro, está em curso nova disputa no campo da educação, área em que a unidade federativa fluminense vem acumulando diversos problemas: incrível alternância de comando na secretaria estadual de Educação - de 1983 a 2024, a média é de um secretário por ano; não assegura o pagamento do piso salarial fixado pela Lei nº 11.738/2008 a todos os professores da sua rede escolar; o tesouro estadual acumula déficit bilionário no repasse de recursos vinculados à educação, como atestam sucessivos pareceres do Tribunal de Contas do RJ; e ainda é o único estado da Federação que não tem um Plano Estadual de Educação em vigor, situação vexatória que já tinha sido vivenciada pelo RJ nos anos 2.000.
A polêmica do momento, que tem polarizado a Secretaria Estadual de Educação e os movimentos sociais da educação no RJ, notadamente o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE-RJ), tem a ver com o currículo do ensino médio a ser praticado na rede estadual de educação, a partir do ano de 2025. Instituído pela Medida Provisória nº 746/2016, convertida na Lei nº 13.415/2017, sob o governo ilegítimo e impopular de Michel Temer, o chamado Novo Ensino Médio (NEM) acarretou expressivo empobrecimento da formação dos estudantes nesta etapa de escolaridade, fenômeno sentido especialmente nas escolas públicas estaduais, que concentram cerca de 85% das matrículas do ensino médio no Brasil e que recebem, de modo geral, a juventude popular e periférica, quando esse perfil de aluno logra atingir aquela etapa de estudos.
De fato, nas escolas particulares destinadas às elites e às camadas médias altas, mesmo com o advento do NEM, o currículo da formação geral em nível médio foi preservado e a formação profissional improvisada não foi implementada. Em outras palavras, os jovens “bem-nascidos” da sociedade brasileira continuaram sendo escolarizados no ensino médio sob a égide de um currículo denso e diversificado, enquanto os filhos do povo (pobres, negros, favelados, periféricos) passaram a estudar banalidades (receitas de brigadeiros e outras frivolidades curriculares), a cursar arremedos de formação profissional e a ser aculturados na lógica do empreendedorismo superficial, sem efetivo conhecimento da área de negócios enfocada, sem crédito, sem suporte tecnológico, ou seja, empreendedorismo do tipo “salve-se quem puder”.
Nesse contexto, a rejeição ao NEM por parte do campo educacional, dos movimentos estudantis, acadêmicos e sindicais, de setores do parlamento brasileiro, foi muito contundente. Com a chegada de Lula ao seu terceiro mandato presidencial, no ano de 2023, havia esperança de que o modelo regressivo outorgado por Temer, reação das elites à universalização dos estudos na faixa etária do ensino médio ou “restauração conservadora”, nas palavras da saudosa Lisete Arelaro, fosse afinal revogado. Não havia, porém, correlação de forças no Congresso Nacional para que a revogação da Lei do NEM fosse efetuada, pois, como se sabe, neste terceiro mandato de Lula, até o presente momento, o presidente esteve várias vezes sitiado pelas forças conservadoras do parlamento federal, apesar de muitas delas estarem incrustradas na estrutura governamental e, tecnicamente, serem integrantes da base parlamentar de sustentação do governo Lula.
De toda forma, com a aprovação, em julho do corrente ano, da Lei nº 14.945/2024, oriunda de Mensagem do governo Lula ao Congresso, uma parte do estrago da era Temer foi consertada, notadamente com o estabelecimento da carga horária mínima de 2.400 horas para a formação geral básica do estudante ao longo do ensino médio. Não foi fácil atenuar as sandices do NEM porque o presidente da Câmara Federal, deputado Arthur Lira, atrapalhou o quanto foi possível: designou como relator da matéria o deputado Mendonça Filho, justamente o ministro da educação da época da imposição do NEM por Medida Provisória, e conduziu a votação final do projeto de forma autoritária a fim de preservar os vetos do relator na Câmara às boas mudanças que o texto tinha sofrido no Senado.
Pois o cerne da atual polêmica no RJ é justamente sobre como preencher aquela carga horária mínima restaurada, na formação geral básica do estudante, de modo a garantir que as diferentes áreas do conhecimento, algumas já suprimidas ou apequenadas do currículo da rede estadual, antes mesmo da vigência do NEM, como no caso de disciplinas como Arte e Espanhol, estejam realmente presentes na formação dos alunos. Sobre esse tema, representei recentemente o Fórum Nacional de Gestão Democrática da Educação (FORGEDE) em qualificado seminário organizado pelo SEPE-RJ a respeito do currículo do ensino médio na rede estadual de educação. Em face da já citada lei recentemente sancionada pelo presidente Lula, que, se não revogou o NEM, ao menos barrou algumas atrocidades formativas, urge diversificar e aprofundar os estudos de nível médio nas escolas estaduais, abandonando banalidades e temas vagos e superficiais.
Na ocasião, foram apresentados resultados de estudo feito pelo SEPE-RJ, com mais de 3.500 participantes, entre estudantes e professores da rede estadual, pelo qual 97% dos sujeitos se mostraram insatisfeitos com a atual matriz curricular do ensino médio, que, como já sublinhado, suprimiu ou apequenou várias áreas de formação, negando à nossa juventude, em especial aos jovens de origem popular que estudam na rede estadual, o direito a conhecimentos filosóficos, científicos e artístico-culturais.
Não se trata apenas de garantir uma formação geral densa como preparação para o ENEM ou para concursos públicos, embora isso também seja importante, é claro. Mas, antes, trata-se de assegurar, para a juventude popular, uma formação crítico-reflexiva e a ampliação do seu repertório cultural, diferencial que sempre existiu em favor dos filhos das elites e das camadas médias altas.
O debate que fazemos aqui, portanto, não é apenas curricular. É também sobre democratização do direito à educação e superação das desigualdades educacionais. É isso que está em jogo! Afinal, como já dizia há décadas o grande intelectual e gestor da educação pública, Anísio Teixeira, a sociedade brasileira só será efetivamente democrática quando a “máquina produtora da democracia” estiver funcionando a contento. E essa “máquina” é a escola pública!