De minha infância, já longínqua, guardo na memória muitas lembranças.
Lembro-me do meu bairro, com suas árvores frondosas, o farfalhar de suas folhas, que embalavam nossas noites ao dormir; das brincadeiras na rua, sem restrições de espaço; o jogo de futebol com os amigos; e os eternos campeonatos de futebol de botão. As amizades se formavam na rua, no prédio, nas bancas de jornais, com as coleções de figurinhas de álbuns diversos, desde campeonatos de futebol até Turma da Mônica, numa disputa velada a quem ia conseguir primeiro completar os álbuns.
Disputavam-se jogos de futebol que duravam horas, nas diversas ruas do bairro, cada um pensando em seus próprios ídolos. Uns queriam ser o Zico, outros Rivelino, alguns Roberto Dinamite, o que tornava as peladas ainda mais disputadas. Os sonhos da infância... Das amizades descompromissadas, dos aniversários nas residências, com os bolos de campos de futebol. A felicidade reinava e a rua era testemunha ímpar dessa grandiosidade.
Quando terminava um campeonato, já se pensava em outro, fosse de botão ou de futebol. Nada podia parar.
Às vezes, disputávamos campeonatos na fachada do meu prédio, que tinha um espaço recuado limitado por um muro, para desespero dos vizinhos, que muitas vezes não devolviam nossas bolas.
Nessa particularidade, um dos vizinhos era um General do Exército que, para nos assustar, dava tiros de festim quando íamos pedir a nossa bola de volta. No outro extremo, morava uma senhora, que mais tarde soubemos, morreria em um incêndio nos Estados Unidos.
Nós também a levávamos a loucura. Criança não é fácil...
Mas, de todas as pessoas que marcaram a minha infância, o que mais me lembro é de Seu Adalberto. Ele morava no primeiro andar do meu prédio e era pai de quatro filhos: duas meninas e dois meninos. Um deles, Danilo, jogava botão e brincava às vezes conosco, mas não era muito participativo nem simpático e acabava sendo esquecido. Dono de um humor ácido, muitas vezes arrumava confusão com qualquer um de nós e foi sendo excluído do convívio.
Suas irmãs eram marcadas pela timidez. Quase nunca saíam de casa e achávamos que eram cerceadas pelo pai.
O outro filho de Seu Adalberto era Eduardo. Para esse, Deus não foi bom. Eduardo nascera ou tivera algum problema no parto e convivia com sua deficiência intelectual. Vivia numa das janelas gradeadas de sua casa, a entrelaçar seus dedos, em um mundo particular de seu cérebro, agarrado às barras, babando uma gosma pela boca, numa imagem, para nós - àquela época - aterradora. Algumas vezes tinha crises, onde gritava loucamente, sacudindo a cabeça, aumentando a baba e puxando as barras. Parecia querer sair, enfrentando as barras de ferro, querendo transpo-las, sem sucesso.
Para nós era uma cena surpreendente e ficávamos observando tudo aquilo, que durava uns três minutos, até o pai acalmá-lo.
Seu Adalberto era um homem que metia medo. Face quase sempre carrancuda, vincada por rugas frontais, semblante de pura maldade (para nós), passeava na rua sempre sorumbático.
Tínhamos sempre a impressão que ele ia nos agredir e passávamos longe dele, quando o víamos a tempo.
Eu morava no mesmo prédio que ele, no segundo andar. No recuado em que jogávamos futebol, havia um portãozinho com trava, que dava nesse recuado e depois uma porta de ferro que levava aos apartamentos.
Um dia, em uma tarde, fui fazer compras para minha mãe na mercearia da esquina. Ao voltar, Seu Adalberto estava no recuado com seu filho. Este estava parado em frente ao portãozinho e Seu Adalberto próximo a ele. Para entrar, tinha que abrir o portão e Eduardo tinha que sair do caminho.
Morrendo de medo, percebi que Seu Adalberto me olhava, com seu rosto vincado e suas sobrancelhas cerzidas. Então, olhei para Eduardo e pedi licença.
Para minha surpresa, Eduardo saiu imediatamente da minha frente, abrindo caminho para que eu passasse pelo portão e entrasse no prédio. Suspirei aliviado e subi para minha casa.
Tudo seria totalmente trivial se um fato posterior não acontecesse.
Eu estudava num colégio em um bairro próximo do meu e pegava uma condução contratada pelos meus pais que me levava de casa para o colégio e vice- versa.
Poucos dias após o episódio do portão, eu estava esperando a condução, quando vi Seu Adalberto vindo da rua. Ele passou o portão e, em vez de entrar no prédio, rodou sobre os calcanhares e veio em minha direção. Eu, acuado , não sabia o que fazer.
Ele postou-se à minha frente colocou sua mão sobre o meu ombro e falou: obrigado por ser educado e chamar meu filho pelo seu nome.
Disse isso e se retirou. Eu, então, estarrecido, compreendi: Seu Adalberto não era mau, não tinha a face juncada e crispada por mau humor. Ele era...triste.
Talvez pelo fato que seu filho tivesse sua vida ligada a barras de ferro físicas da janela de seu apartamento, barras essa também mentais. Ele não era livre pra jogar futebol, campeonatos de botão ou qualquer outra atividade; não corria livre, sorriso no rosto, a aproveitar sua infância, juventude ou qualquer outra fase da vida; não choraria, riria, se magoaria, venceria, teria medo ou qualquer outra emoção.
A Eduardo só restavam as barras de ferro intransponíveis.